A série da Netflix “The Crown” tem sido tão elogiada pelas interpretações e recriações de época, como atacada pelo excesso de liberdades dramáticas que toma e pelas descaradas entorses históricas que contempla, sobretudo na época mais recente e no que respeita à família real inglesa. Num artigo publicado no ano passado no The Guardian, o jornalista e historiador Simon Jenkins acusava “The Crown” de “transformar a realidade em propaganda e abusar cobardemente da liberdade artística”. E Hugo Vickers, escritor e biógrafo da família real, deu-se ao trabalho de fazer uma compilação das principais e mais relevantes deturpações feitas pela série.

Quando virem “Spencer”, do chileno Pablo Larraín, os detratores de “The Crown” como Jenkins ou Vickers, vão cair de costas. Larraín, que já antes retratou Jacqueline Kennedy de forma controversa em “Jackie” (2016), dedica-se, neste filme em que a protagonista é a princesa Diana (Kristen Stewart), a tecer uma completa fantasia em redor desta, especulando sobre o que poderia ter acontecido na propriedade de Sandringham, em 1991, quando a família real lá foi passar o Natal, como é tradição. Larraín começa avisando que se trata de “uma fábula”, mas o poder de sugestão do cinema é tal, que é muito fácil ao espectador tomar como verdadeiro aquilo que não passa da mais descabelada especulação. “Spencer” é uma ficção total que pretende passar insidiosamente pela realidade.

[Veja o “trailer” de “Spencer”:]

https://youtu.be/20BIS4YxP5Q

Ao mesmo tempo que se posiciona como anti-monárquica, a fita adere de alma e coração ao mito popular da “linda, infeliz, oprimida e trágica princesa Diana”, vítima estóica da bafienta, arrogante e malvada família real, e recorre a tudo para nos pôr do lado dela. Parece um trabalho encomendado e pago por um grupo de admiradores e defensores fanáticos da Princesa de Gales, tal é a forma como Larraín e o argumentista Steven Knight vitimizam e incensam a falecida princesa (que é posta a identificar-se com a infortunada Ana Bolena, que Henrique VIII mandou decapitar) e diabolizam a família real. “Spencer” lembra um daqueles velhos filmes de horror gótico em que uma rapariga linda e inocente está fechada numa mansão vetusta, rodeada de pessoas que a querem enlouquecer, ou fazer passar por louca.

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[Veja uma entrevista com Kristen Stewart:]

Apesar de dar ares de Diana, Kristen Stewart, menos do que a interpretar, imita-a de maneira afetadíssima e com um sotaque “posh” estrangulado que faz com que pareça sofrer de falta de ar. A princesa é apresentada como uma mulher “livre” e “irreverente”, com gostos e hábitos de classe média, que só quer libertar-se de um casamento falhado e uma vida na corte constrangedora, e viver em paz com os filhos. Mas a sinistra e empalhada família real não está pelos ajustes e ao longo de três dias tudo faz para a ter calada, vigiada, conformada, controlada, humilhada e longe das objetivas dos “paparazzi”. Até lhe tiram a sua camareira favorita e confidente (Sally Hawkins) e mandam vir o Estribeiro-Mor da rainha, um militar severo (Timothy Spall), para a ter debaixo de olho em permanência. Não parece que estamos em Inglaterra, mas sim na ex-União Soviética.    

[Veja uma entrevista com o realizador Pablo Larraín:]

Pablo Larraín é da esquerda radical mas parece ter um fascínio por mulheres das classes altas, bonitas, célebres e carismáticas (ver o citado “Jackie) e filma “Spencer” numa atmosfera que circula entre o absurdo e o paranoico, alinhando sequências que vão do caricatural ao ridículo, chegando ao cúmulo na derradeira, em que Diana finge ser um espantalho para abortar uma caçada às perdizes – pelas quais o seu coração sofre de irem ser mortas a tiro – e fugir com os filhos, para irem comer “junk food” na rua em Londres. Não sem antes haver uma sequência onírica filmada com uma câmara em vertiginosa autogestão, em que a princesa adulta se cruza consigo mesma em várias fases da sua infância e adolescência, quando era ainda só Diana Spencer.

E como já nem numa fita sobre a princesa Diana pode faltar o elemento “woke”, temos direito a um momento em que a sua fiel camareira aproveita uma escapadela à praia para lhe confessar que é lésbica e a ama. Com toda a distância e respeito, claro. Ainda está para ser feito o filme no qual, longe dos clichés da vítima ingénua e glamorosa de uma instituição que “Spencer” vê como obsoleta, e de uma dinastia insensível que vive numa sufocante redoma de privilégios, rituais e tradições anacrónicas, mostre a verdadeira tragédia da princesa Diana, tão manipuladora como foi manipulada: o não ter percebido que era impossível ser, ao mesmo tempo, realeza e vedeta “pop”, símbolo nacional e ícone de massas.