(Em atualização)
Dez pessoas foram detidas, esta segunda-feira, na sequência de uma megaoperação — denominada Miríade — da Polícia Judiciária (PJ) em que participam cerca de 320 inspetores e peritos em 100 locais no país. Os mandados de detenção visaram militares, comandos e ex-comandos, suspeitos de terem criado uma associação criminosa que envolve as missões portuguesas da ONU, na República Centro Africana (RCA). É a maior operação do ano da PJ.
Em causa estão suspeitas de tráfico de diamantes, ouro e droga que seriam transportados da República Centro Africana para a Europa em aviões militares. Também sob investigação está um alegado esquema de branqueamento de capitais, nomeadamente através da compra de bitcoins. A investigação é da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ. As buscas estão a ser acompanhadas pelo juiz Carlos Alexandre, que emitiu os mandados de busca e de detenção, e pela procuradora Cláudia Ribeiro.
Segundo a TVI24, sob investigação está, por exemplo, o regimento de Comandos, no quartel da Carregueira, que seria a base dos principais suspeitos do esquema, que duraria há vários anos.
Os militares aproveitariam a não fiscalização da carga transportada por aviões militares para montarem um negócio ilícito. A partir de Portugal, para onde eram levados os produtos, os diamantes em bruto seriam depois transportados por via terrestre para Antuérpia e Bruxelas, na Bélgica, onde seriam vendidos por valores milionários. É daí que surge o segundo crime em causa: branqueamento de capitais, através de testas de ferro para a abertura de contas bancárias e da compra de bitcoins, uma moeda virtual. Segundo o Público, os militares chegavam a receber 50% do valor. A operação de investigação teve início em 2020.
180 militares portugueses partem em missão em outubro para a República Centro-Africana
Num comunicado divulgado ao início da tarde desta segunda-feira, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) confirma a execução de 100 mandados de busca, 95 buscas domiciliárias e cinco não domiciliárias, visando a recolha de provas. O inquérito, dirigido pelo DIAP de Lisboa, teve o apoio da Autoridade Tributária.
Foram ainda executados dez mandados de detenção emitidos pelo DIAP, informa ainda. “No inquérito investiga-se uma alegada rede criminosa, com ligações internacionais, que se dedica a obter proveitos ilícitos através de contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafação e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas, tendo por objetivo o branqueamento de capitais”, lê-se. As investigações prosseguem sob a direção do Ministério Público do DIAP de Lisboa.
Um dos detidos é um guarda-provisório em formação na GNR, desde junho de 2021, em Portalegre, que “ingressou na formação proveniente das Forças Armadas”, refere a GNR em comunicado. A GNR salienta que “mostra total disponibilidade para colaborar com a Polícia Judiciária na investigação em curso”. Outro detido é um agente da Polícia de Segurança Pública, pertencente ao comando metropolitano de Lisboa que já foi militar, apurou o Observador. Os crimes terão sido cometidos enquanto era militar, não em função de agente da PSP.
O Observador sabe que o guarda tinha sido transferido do Exército e era neste braço das Forças Armadas que estava quando os alegados crimes foram cometidos. A GNR vai abrir um processo interno para averiguar a atuação do guarda-provisório, tal como é costume em casos desta natureza, mas só no fim da investigação geral é que se tomam medidas definitivas. Por enquanto, não está previsto o afastamento do militar dos cargos que ocupava no momento da detenção.
Portugal tem feito parte de vários contingentes da ONU em operações de paz na República Centro Africana e terá sido nesse contexto que os crimes de tráfico tiveram lugar. As suspeitas recaem sobre militares e ex-militares que estiveram nas missões naquele país, alguns dos quais são agora agentes da PSP ou militares da GNR. Por isso, também foram visados locais de formação da PSP e GNR em Torres Vedras, Queluz e Portalegre. A ação desenrolou-se na região de Lisboa, Funchal, Bragança, Porto de Mós, Entroncamento, Setúbal, Beja e Faro.
A extração de pedras preciosas na RCA é muitas vezes feita com recurso a trabalho forçado de crianças. Na RCA estão destacados 180 militares portugueses na chamada Minusca (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana). Já no âmbito da missão de treino da União Europeia (EUTM-RCA) estão 25 militares.
Em 2013, o caos tomou conta da RCA após o derrube do ex-Presidente François Bozizé por grupos armados juntos na Séléka, o grupo rebelde dominante, o que suscitou a oposição de outras milícias. O território tem sido palco de confrontos entre esses grupos, o que teve como consequência a saída de 4,7 milhões de habitantes das suas casas.
Forças Armadas “tomarão as devidas medidas”. Denúncia partiu, em 2019, do comandante dos militares destacados
Em comunicado, as Forças Armadas revelam que foi em dezembro de 2019 pela primeira vez reportado ao comandante da 6ª Força Nacional Destacada (FND), na RCA, o possível envolvimento de militares portugueses no tráfico de diamantes. O comandante da FND “relatou prontamente ao EMGFA [Estado-Maior-General das Forças Armadas] a situação, tendo esta sido de imediato denunciada à Polícia Judiciária Militar (PJM) para investigação“, lê-se ainda.
A PJM fez depois a denúncia ao Ministério Público, que “nomeou como entidade responsável pela investigação a Polícia Judiciária”.
Em causa está a possibilidade de alguns militares que participaram nas FND, na RCA, terem sido utilizados “como correios no tráfego de diamantes, ouro e estupefacientes“. Os produtos terão sido, alegadamente, “transportados nas aeronaves de regresso das FND a território nacional”.
O EMGFA também “mandou reforçar os procedimentos de controlo e verificação à chegada dos militares das FND e respetivas cargas”. Além disso, estão pendentes das investigações em curso os “inquéritos militares e respetivas consequências“, “com o cuidado de não interferir neste processo, ainda em segredo de justiça”.
“Uma vez esclarecidas as responsabilidades, as Forças Armadas tomarão as devidas medidas sendo absolutamente intransigentes com desvios aos valores e ética militar”, garantem as Forças Armadas, que “repudiam totalmente estes comportamentos contrários aos valores da Instituição Militar”.
Marcelo: megaoperação “não atinge minimamente o prestígio das Forças Armadas”
Em declarações à RTP, a partir de Cabo Verde, onde está numa visita oficial, o Presidente da República recusa que a megaoperação prejudique a imagem das forças armadas.
Marcelo começou por dizer que “normalmente” não comenta a situação portuguesa em território estrangeiro, mas abriu uma exceção por se tratar de uma “situação de projeção internacional, de prestígio das Forças Armadas”. O Chefe de Estado salienta que, logo que a denúncia foi feita, no final de 2019, “as Forças Armadas, elas próprias, através do Estado-Maior General das Forças Armadas, em colaboração com o Estado-Maior do Exército, desencadearam as investigações”.
Além disso, sublinha, a Polícia Judiciária Militar “teve um papel nessas investigações” e uma vez que “o âmbito era mais vasto, a Polícia Judiciária passou a intervir e a ter um papel fundamental nas investigações, ao longo de 2020 e 2021”.
O objetivo, prosseguiu Marcelo, é “levar as investigações o mais longe possível, para apurar o que se passa, confirmar se sim ou não são casos isolados — como à primeira vista há quem entenda que sejam”. No entanto, as escutas ao principal suspeito — o militar dos Comandos — revelaram que o esquema de tráfico de ouro e diamantes seria mais amplo do que inicialmente se julgava e que envolvia crimes de burlas informáticas, acessos indevidos a sistemas e branqueamento de capitais, enumera a Sábado.
Questionado sobre se o caso pode deixar “mossa” na imagem internacional das Forças Armadas, o Presidente recusa. “Não atinge minimamente o prestígio das Forças Armadas portuguesas. Pelo contrário, o facto de investigarem casos isolados que possam ter ocorrido e tomarem essa iniciativa só as prestigia em termos internacionais“, afirma. O “prestígio das forças armadas” está “incólume”. “As Forças Armadas, elas próprias, fizeram o que deviam ter feito, as instituições de investigação policial estão a fazer o que deve ser feito.”
Mais tarde, em novas declarações aos jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que a investigação foi desencadeada “em boa hora”: “Foram as próprias Forças Armadas as primeiras a perceberam que era preciso assumir essa responsabilidade. Isso só as prestigia, só aumenta o prestígio internacional que têm e que é reconhecido por toda a gente, quer pelas forças destacadas na RCA, quer por todo o mundo”, considerou o Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa insistiu que casos como este — que sugere serem “isolados” — existem “em todas as sociedades”, mas que “devem ser punidos se for caso disso”. De qualquer modo, o esquema em investigação atualmente não deve prejudicar a imagem das Forças Armadas: “A generalidade é um exemplo daquilo que é a qualidade — e mais do que qualidade, a excelência — das nossas Forças Armadas”.
António Costa diz que megaoperação “tem impacto negativo” nas Forças Armadas
O primeiro-ministro, António Costa, disse esta segunda-feira, em entrevista à RTP, que a megaoperação “claro que tem um impacto negativo” nas Forças Armadas. No entanto, ressalvou que foram as mesmas que “detetaram e comunicaram às autoridades judiciais” para que se pudessem desenvolver as “diligências necessárias”. “Ninguém está livre de ter um criminoso ao seu lado, seja na Forças Armadas, seja político.”
Além disso, o chefe do Executivo considera que este episódio não vai dar “má imagem” de Portugal internacionalmente, explicando que as autoridades portuguesas notificaram atempadamente a Organização das Nações Unidas.
Ministro da Defesa enviou toda a informação para a ONU
O ministro da Defesa revelou ter informado as Nações Unidas (ONU) em 2020 das suspeitas de tráfico que recaíam sobre alguns militares portugueses em missão na República Centro-Africana, garantindo que estes já não se encontravam naquele território.
Informei [a ONU] de que a denúncia tinha ocorrido, que o assunto tinha sido encaminhado para as nossas autoridades judiciais e que todos os elementos pertinentes tinham sido entregues para investigação judiciária. E também, naturalmente, que os militares sob suspeita já não estavam na RCA e que portanto podiam ter toda a confiança em relação às nossas Forças Armadas como sempre tiveram”, adiantou João Gomes Cravinho, em declarações à agência Lusa.
Gomes Cravinho disse ter sido informado sobre as suspeitas de tráfico de diamantes e ouro em missões na República Centro-Africana por militares portugueses em dezembro de 2019 pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), almirante António Silva Ribeiro, que lhe falou da sua intenção de comunicar à Polícia Judiciária Militar (PJM) os casos. Já “nos primeiros meses” de 2020, o ministro disse ter informado a ONU da situação.
O governante garantiu ainda que “aqueles cujos nomes tinham sido indicados como suspeitos já não regressaram à RCA em missões posteriores”, vincando que “os militares denunciados já não estavam na RCA na altura da denúncia”. Questionado sobre a possível dimensão do caso, o ministro adiantou que a informação que lhe foi dada em dezembro de 2019 “dizia respeito a dois militares”.
Eu hoje vejo pelas notícias que houve 10 militares ou ex-militares que foram detidos, mas não tenho mais informação do que isso. Tudo indica que se trata de atividades assumidas a título individual por alguns militares e não por algo que tenha qualquer tipo de natureza sistémica”, sustentou.
João Gomes Cravinho indicou que, para já, estão em causa apenas suspeitas, apesar de considerar “profundamente lamentável que haja este tipo de alegações em relação a militares portugueses”.
Muito importante também sublinhar que os procedimentos estabelecidos para lidar com este tipo de situação, com desvios de natureza criminal nas Forças Armadas, esses procedimentos foram entabulados de imediato, ou seja, tendo havido denúncias de irregularidades, essas denúncias foram imediatamente encaminhadas para a Polícia Judiciária Militar, que por sua vez fez o seu trabalho”, adiantou.
Entretanto, a ONU confirmou que está disponível para colaborar com as investigações. Num comentário sobre a operação Miríade em Portugal, Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, afirmou que a organização está a acompanhar as notícias e manifestou disponibilidade para cooperar na investigação sobre suspeitas de tráfico de ouro e diamantes por militares portugueses na missão de paz na República Centro-Africana.
Acabámos de ver as notícias esta manhã, estamos a seguir o assunto. Por uma questão de princípio, vamos sempre cooperar e prestar auxílio dentro das estruturas legais existentes”, declarou o porta-voz da ONU, em conferência de imprensa na sede da organização, em Nova Iorque.
Santos Silva: Investigação “não afeta a nossa imagem internacional”
Numa primeira reação à megaoperação, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, considera que a investigação “não afeta a nossa imagem internacional”. “Se as autoridades judiciais entendem que há indícios que exigem investigação essas investigações devem ser feitas“, defendeu, em declarações transmitidas pela TVI24, à margem de uma conferência do AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), em Coimbra.
Santos Silva salientou ainda o papel dos militares portugueses nas missões internacionais como “unanimemente reconhecido” e diz que para a “imagem internacional” de Portugal “muito beneficia o facto de sermos um contribuinte líquido para a segurança internacional”. “Não oiço de nenhum meu interlocutor internacional que fale de forças portuguesas destacadas em missões de paz internacionais outro pedido que não que nós reforcemos e continuemos a nossa presença.”
Questionado sobre se este caso não deveria ter acontecido, Santos Silva apenas responde: “Naturalmente.” Augusto Santos Silva disse ainda que “não trata indícios como se fossem factos apurados”.
Também o secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional reagiu, esta segunda-feira, defendendo que “as investigações são muito importantes” para a credibilidade das instituições militares e recusando que a investigação afete a imagem das forças armadas portuguesas e de Portugal. “Não afeta. Se houver alguma situação que deva ser esclarecida, ela tem de ser esclarecida. Se não fosse esclarecida, é que poderia afetar.”
“Como é evidente, vivendo nós num Estado de direito e existindo separação de poderes, estas questões devem ser investigadas de uma forma absolutamente clara, para defender o interesse público, e, portanto, desse ponto de vista, nós observamos com toda a atenção no Governo como é que estas investigações estão a ser feitas, porque elas são muito importantes, nomeadamente para mantermos com toda a credibilidade e com todo o bom-nome todas as instituições militares”, disse aos jornalistas Jorge Seguro Sanches, na Marinha Grande, distrito de Leiria.
“Nós somos muito pouco preventivos, somos muito bons reativamente”
O presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), António Nunes, defende, em declarações à Rádio Observador, que Portugal tem de atuar mais na prevenção para evitar que casos como este voltem a acontecer. Uma via, sugere, pode ser através de inspeções periódicas, por amostragem, à carga dos aviões militares.
“Nós somos muito pouco preventivos, somos muito bons reativamente. (…) O problema a que continuamos a assistir em Portugal é a área da prevenção. Tudo isto se passa no momento em que devemos tomar em consideração que, por natureza, se há medidas de prevenção para o transporte de mercadorias, para os civis de um lado para o outro, também no transporte militar se deve verificar pelo menos por amostragem. Muitas vezes confiamos demasiado nas pessoas”, afirmou.
António Nunes identifica outro problema em Portugal: a “demografia”, que “condiciona o número de disponíveis para integrar as fileiras das forças armadas e das forças e serviços de segurança”. “Quando temos uma diminuição significativa no número de candidatos, passamos a ter uma probabilidade de incorporar pessoas que têm menos escrúpulos e isso pode provocar situações, no futuro, negativas”, considera.
O presidente do OSCOT salienta, porém, que é preciso não confundir a ação do exército português, que tem “prestigiado a nação”, com “alguns elementos”, que “mancham significativamente a nossa imagem”. “Não podem, em momento algum, pôr em causa a confiança que temos de ter nas nossas forças armadas.”
Buscas Exército. “Somos muito bons reativamente, mas não na prevenção”
AOFA considera estar em causa “bom nome” das Forças Armadas
A Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) considerou esta segunda-feira que, a confirmarem-se as suspeitas de tráfico de diamantes e droga por elementos das Forças Armadas, “está em causa o bom nome” da instituição e dos militares portugueses.
Em comunicado, a associação comentou a polémica sobre as suspeitas de tráfico de diamantes, ouro e droga provenientes da República Centro-Africana (RCA) por militares portugueses que estiveram destacados naquele país. “Inevitavelmente está em causa o bom nome das Forças Armadas portuguesas e dos militares portugueses” e, por isso, a associação “considera, sem tibiezas, que toda a verdade deve ser apurada até às últimas consequências”.
Se houver envolvimento de militares, “deverão ser exemplarmente responsabilizados e punidos sem quaisquer contemplações”, sustenta a nota subscrita pelo presidente da AOFA, António da Costa Mota.
No entanto, a associação diz que “não é de todo tolerável que se consumem julgamentos em praça pública, devendo ser escrupulosamente respeitado o princípio fundamental da presunção da inocência”, até à condenação ou ilibação dos suspeitos.
AOFA considera igualmente que todo e qualquer eventual aproveitamento deste caso, seja por parte de quem for, para colocar em causa o exemplar desempenho das Forças (…), merecerá o maior repúdio e condenação da nossa parte”, acrescenta o comunicado.