Parecia ser uma votação decisiva como a da proposta de Orçamento do Estado ou do relatório final da comissão de inquérito ao Novo Banco. Durante cerca de duas horas os deputados da comissão parlamentar de ambiente, energia e ordenamento do território discutiram de forma muito acesa uma proposta do PS que, para a maioria dos representantes da oposição, tinha apenas um objetivo: atirar para a próxima legislatura eventuais alterações ao decreto-lei que regulamenta a lei de bases do setor mineiro.

Depois de duas votações a pedir audições, que muito dificilmente se realizariam dado o fim iminente da dissolução do Parlamento, em que saiu vencido, os socialistas adiaram de forma potestativa a votação que pode ainda ocorrer até à próxima semana. A comissão volta a reunir-se esta quinta-feira após o plenário. Mas, para as alterações passarem, é preciso que a conferência de líderes agende a votação final global em plenário até sexta-feira da próxima semana, confirmou ao Observador o deputado Nelson Silva do PAN, um dos partidos que quer alterar o diploma. O que não está garantido.

A legislação do Governo é de maio de 2021 e faz a regulamentação da lei de 2015 aprovada no Governo de Pedro Passos Coelho que estabelece o regime de bases de revelação e exploração de recursos minerais e que ficou seis anos à espera de ser regulamentada. Em junho, PSD, Bloco de Esquerda, PCP/Verdes e PAN manifestaram a intenção de suscitar a apreciação parlamentar do diploma que o Governo aprovou sem passar pelo crivo da Assembleia.

Nas dezenas de propostas de alteração apresentadas, os partidos defendem o reforço do papel vinculativo de autarquias na decisão final dos projetos — no diploma em vigor, as câmaras só podem vetar explorações quando não está em causa o interesse nacional —, do dever de consulta a populações e do papel de comissões de acompanhamento, bem como a interdição de autorizar explorações de recursos em zonas da rede natura e em área protegida.

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Estas propostas produzidas no quadro da apreciação parlamentar caem com a legislatura. Os partidos podem voltar à carga com projetos de lei na próxima, mas o seu resultado depende da composição de forças que sair das eleições. No atual quadro partidário, o PS dificilmente conseguiria travar todas as mexidas que podem ter consequências na atribuição de contratos de exploração decorrentes dos direitos de prospeção que a Direção-Geral de Energia e Geologia deu em outubro a quatro concessionários privados.

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Antes da votação agendada para esta quarta-feira, os socialistas suscitaram a necessidade de realizar audições com várias entidades. Com o Parlamento em contrarrelógio dada a dissolução já anunciada, mas ainda não concretizada pelo Presidente da República, a audição de entidades externas dificilmente seria conciliável com calendário apertado da legislatura, como salientaram vários deputados.

Bruno Coimbra do PSD estranhou que o Governo tivesse feito uma consulta pública de apenas 15 dias antes de aprovar uma lei tão complexa como a regulamentação do setor mineiro e que agora o PS venha invocar a preocupação de consultar várias entidades. Nelson Peralta do Bloco de Esquerda lembrou que as propostas de alteração ao diploma já foram aprovadas em plenário sem que o PS tenha feito propostas. O PS “não tem maioria, mas quer garantir por outras vias essa maioria. Presume-se que votará contra as alterações”.

“É a ironia das ironias”, comentou Duarte Alves do PCP. “Um Governo que não ouve as pessoas” (numa referência à assinatura de 14 contratos mineiros) agora quer ouvir entidades para alterar a lei” e atirou a pergunta: “O PS vai usar esse mecanismo para adiar a votação? Se a audição for aprovada, a apreciação parlamentar não se fará nesta legislatura e isso “terá uma leitura política”. Mariana Silva, dos Verde, também viu na proposta socialista uma manobra para por pedras na engrenagem, afirmando que o partido quer votar as alterações na atual legislatura.

PS quis ouvir mais de 10 entidades com o Parlamento a dias da dissolução

Em nome dos socialistas Nuno Fazenda nunca reconheceu que o partido que apoia o Governo queria atirar a votação de alterações para um novo Parlamento. Mas a pretexto de ter recebido o pedido de uma entidade para ser ouvida — a Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente — pôs a votação um requerimento para ouvir em audição mais de dez entidades, entre as quais a Direção-Geral de Energia e Geologia, a Agência Portuguesa do Ambiente, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, as cinco comissões de coordenação regionais, a Associação Nacional de Municípios e várias associações ambientalistas.

Lembrando que é prática dar 15 dias para os partidos apresentarem propostas de alteração — quando a apreciação parlamentar do diploma foi aprovada na generalidade apenas na semana passada —, sublinhou que esta é uma lei complexa e que devem ser ouvidas entidades mais diretamente envolvidas. Fazenda  argumentou ainda que os partidos não podem defender a participação pública à quarta-feira e descartá-la no dia seguinte, considerando ser uma irresponsabilidade “acelerar esta legislação”. Querer fazer à pressa também “tem leitura política”, respondeu aos comunistas.

O requerimento foi muito discutido antes de ir a votos com os deputados a apontarem o óbvio. “O PS está empenhado em garantir que esta votação não avance”, afirmou Bruno Coimbra do PSD. “Parece que não sabemos que a AR fecha para a semana. O objetivo é que não sejam ouvidos”,  afirmou Nelson Peralta do Bloco que prometeu votar contra “malabarismos”.

Audições substituídas por pareceres escritos no prazo de 24 horas

Nuno Fazenda insistiu e questiona a interpretação do presidente da comissão (também deputado do Bloco de Esquerda, José Maria Cardoso) de que não era possível. A agenda é “apertada”, mas podemos fazer um esforço e perante o ceticismo sugeriu que as entidades fossem consultadas por escrito. Seguiu-se uma discussão sobre o prazo para a entrega dos pareceres e foi a votos um requerimento que referia apenas o “mais brevemente possível”.

A proposta socialista acabou por ser chumbada, com os votos contra do PSD, PCP, Verdes, Bloco e a abstenção do PAN e do CDS, com o presidente a agendar a votação para depois do plenário, dado o adiantado da hora e um guião de 200 páginas com alterações de vários partidos. Mas a coisa não ficou arrumada. Percebendo que o CDS estava disponível para votar a favor com um prazo reduzido que permitisse concluir a apreciação do diploma nesta legislatura, os socialistas avançam com outra votação, desta vez dando o prazo de 24 horas às entidades para se pronunciarem.

Para o PSD a pergunta sobre o prazo era retórica. “E impossível as entidades pronunciarem-se em 24 horas, e termos tempo para ler tudo”. Também o presidente da comissão defende que o prazo agora sugerido é um “ultimato de tempo” para responder a uma questão tão complexa.

Nuno Fazenda explica que os socialistas queriam mais tempo para ouvir estas entidades, mas dada a posição das outras bancadas consideram não ter outra alternativa. “O que está em causa é uma última tentativa para se ouvir as entidades. É a única forma de consultar alguém. “Já que nos impõem um limite de tempo, é a única forma de fazer isto passar”.

E foi feita nova votação. Desta vez o CDS, como tinha sido sinalizado Pedro Morais Soares, vota a favor da proposta socialista, mas o PAN muda o voto de abstenção para contra. Nelson Silva justifica a mudança: “24 horas não é um período aceitável para as entidades darem o seu parecer”. O resultado foi um empate. Repetida a votação e o resultado, a proposta é recusada e os deputados abandonam a sala a menos de um hora do início do plenário com a perspetiva de uma maratona de votações no pós-plenário das muitas alterações propostas pelos vários partidos num guião com mais de 200 páginas. Mas antes de se iniciar a votação no final de tarde da quarta-feira, o PS pediu o adiamento potestativo da votação.

“Tenham consciência das alterações que querem fazer”, avisou João Galamba

Horas antes, durante a audição ao ministro do Ambiente sobre a assinatura de nove contratos mineiros (e cinco adendas), o secretário de Estado adjunto e da Energia deixou bem clara a preocupação do Governo perante eventuais alterações ao diploma na linha do defendido pelos vários partidos da oposição. João Galamba alertou para as consequência de proibir explorações mineiras na rede natura, lembrando que a Somincor, a maior mina (de cobre) do país, está numa dessas áreas.

“As proibições não devem estar nesta lei”, mas sim nos instrumentos e planos locais e regionais. Frisando que o Governo excluiu a rede natura do plano para a prospeção do lítio (excluindo a área protegida da Serra de Arga que fazia parte do roteiro deixado pelo PSD), defendeu que o diploma contestado “não autoriza minas, quem o faz é a avaliação de impacte ambiental ou as regras criadas pelos parques naturais. Não devemos rigidificar a lei tornando o nosso território inviável para a atividade económica. Temos instrumentos mais adequados”, invocando o caso da exploração de lítio em Montalegre que ainda não avançou por falta de estudo de impacto ambiental conforme.

“A sra deputada (dirigindo-se a Bebiana Cunha do PAN) não quer avaliar projetos, quer proibir projetos. Querem ilegalizar a mina da Somincor? — que descreve como uma referência europeia na gestão ambiental e a empresa que melhores salários paga no Baixo Alentejo — Tenham consciência das alterações que querem fazer”.