A meio de setembro, ainda antes da decisão da meia-final da Taça dos Libertadores com o Atl. Mineiro, era a claque que o criticava. Que era arrogante, que tinha uma prepotência europeia, que tinha adormecido à sombra do sucesso, que perdera o balneário. Mais recentemente, alguns antigos internacionais brasileiros como Cicinho ou Emerson Sheik. Que se preocupava em demasia com os outros, que era rabugento, chato, sempre enjoado. Há muito tempo, parte da imprensa, como recordava este sábado o Folha de São Paulo. Que é muito defensivo, que responde mal quando perde, que deixa tiques de arrogância. Abel Ferreira pode gerar amores ou ódios mas não passa ao lado de ninguém – e esse é o melhor elogio que se pode fazer.

Palmeiras vence Flamengo no prolongamento com golo de Deyverson e reconquista Taça dos Libertadores

Em condições normais, ainda para mais sendo um treinador estrangeiro, o português teria saído do clube e do Brasil. Primeiro porque não conseguia ganhar, depois porque não conseguia voltar a ganhar. Contudo, o técnico foi mais resiliente, foi mais pragmático, foi mais resistente. Ficou, quis ficar, fez por ficar. 

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Em pouco mais de um ano (a estreia foi no início de novembro de 2020), Abel Ferreira conquistou dois títulos, entre os quais uma Taça dos Libertadores, apurou-se para seis finais, chegou às 50 vitórias pelo clube em outubro, alcançou o recorde mundial de 100 jogos em pouco mais de um ano (370 dias), foi o primeiro estrangeiro a ganhar a Libertadores pelo Palmeiras desde 1985, o segundo com mais vitórias na prova pelo Verdão, o técnico com mais encontros feitos no recente Allianz Parque. Agora, chegava a Montevideu como o primeiro treinador estrangeiro a conseguir revalidar uma presença na final do duelo mais importante da América do Sul, tentando bater o Flamengo de Renato Gaúcho por mais história. Era preciso recuar duas décadas para ver algo do género, quando Bianchi foi bicampeão pelo Boca Juniors.

“Agora sinto-me calmo, tranquilo. Eu e os meus jogadores temos a certeza do que fazer, é preciso desfrutar da final com responsabilidade. Quantos não gostariam de estar no meu lugar, no lugar do Felipe Melo, de ter o privilégio de estar neste templo… Temos de desfrutar, impor o nosso jogo. Apesar de o Palmeiras já não ganhar há mais de quatro anos ao Flamengo, temos uma oportunidade de fazer isso. A minha história no Palmeiras tem sido fazer história com estes jogadores, aqui e agora. A história é rica mas quem vive da história é o museu. Quem ganham são os jogadores, aqui e agora. Esta equipa já provou que, com o passado e não com o presente, pode escrever história”, dissera o técnico na véspera.

“Quanto mais pensar sobre o que vai acontecer na final, mais se esquece o que fazer no jogo. Os jogadores precisam de calma e tranquilidade, a certeza do que fazer. Isto passo aos meus jogadores, eles estão preparados. A tática é 30% do jogo. Os outros 70% vem da capacidade de lidar com momentos de tensão. E, quando penso neles, vem-me gratidão, de agradecer por estar aqui. Estou grato por estar aqui. O resultado é consequência do que fizermos. Quero que cada jogador seja fiel ao seu jogo e jogue de forma coletiva. Só peço isso. Se isso acontecer, o nosso propósito vai cumprir-se”, acrescentou.

Havia dados históricos à medida de ambos. Olhando para o Palmeiras, nunca o Verdão conquistara um título fora do país (as duas finais da Libertadores ganhas foram ambas no Brasil) mas também nunca tinha perdido um jogo fora contra adversários brasileiros. E existia também a questão dos momentos que cada um dos conjuntos atravessava, tendo o Palmeiras com três derrotas e um empate nos últimos quatro jogos depois de seis vitórias seguidas e o Flamengo com nove partidas seguidas sem desaires após duas derrotas consecutivas. No entanto, final era final e tudo chegava em aberto mesmo com essa ideia transversal na imprensa brasileira de um Flamengo melhor no individual e um Palmeiras mais capaz no coletivo.

“Sermos fiéis a nós próprios, fizemos uma preparação de duas semanas com a certeza absoluta daquilo que temos de fazer e temos de estar gratos por estarmos aqui pela segunda vez seguida a disputar o maior troféu da América do Sul e queremos muito. Trabalhámos muito, preparámos muito, chegámos pelo caminho mais difícil mas estamos mais do que preparados. Que seja uma grande festa e que o nosso propósito se cumpra porque desde o primeiro dia é ganhar esta competição. Conhecemos o nosso rival mas o mais importante é estarmos concentrados no que temos de fazer, que é o que controlamos. Não sei se vai jogar mais alto, mais direto, não sei. O que vou pedir aos meus jogadores que sejam só fiéis a eles próprios porque acredito que nestas finais o nosso maior adversário está dentro de nós próprios”, disse Abel à chegada ao Estádio Centenário, em Montevideu, já depois da comitiva do Flamengo.

O treinador português sabia o que dizia. Sabia o que fazia. Sabia o que pensava. Mais do que isso, sabia como dizia, como fazia e como pensava. E agora, entre tantos nomes que foi ouvindo nos últimos meses, juntou mais um de forma histórica: bicampeão continental na América do Sul, seguindo os feitos de José Mourinho na Europa (FC Porto e Inter) e de Manuel José em África (Al Ahly).

Sem ter inicialmente uma postura assumida de uma linha de cinco atrás, o Palmeiras sentiu a entrada mais forte do Flamengo, deixou que o conjunto do Rio de Janeiro subisse as suas linhas e por duas ocasiões logo a abrir conseguiu provocar estragos na profundidade: primeiro foi Rony a receber descaído pela direita, a fazer a diagonal e a ver o passe cortado para canto (2′), depois foi Mayke a subir pela lateral nas costas de Filipe Luís, a receber o passe longo de Gustavo Gómez, a cruzar atrasado e Raphael Veiga a rematar de primeiro para o 1-0 (6′). O setor mais experiente do conjunto do Rio de Janeiro tinha todos a olhar uns para os outros tentando perceber o que se passara enquanto o Verdão estava na frente do marcador.

A partir daí, de uma forma mais vincada, Scarpa foi recuando a fechar o lado esquerdo com a colocação mais central de Piquerez como terceiro central, formando-se uma linha de cinco defesas contra um ataque quase a quatro do Flamengo, tendo Éverton Ribeiro, Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol, com o apoio de um dos laterais e o adiantamento de Andreas Pereira. Durante largos minutos, o Palmeiras não conseguiu sair do seu meio-campo, Bruno Henrique perdeu a bola em boa posição na área (17′), Gabriel Barbosa deixou um primeiro aviso de cabeça ao lado (19′), mas bastou voltar a fazer transições com mais posse para ameaçar o segundo e “apagar” o Mengão, num corte que quase deu autogolo de Rodrigo Caio (29′) e por Raphael Veiga, num remate cruzado e rasteiro que Diego Alves defendeu de forma segura (36′).

Arrascaeta, após uma assistência de cabeça de Bruno Henrique, ainda teve a grande oportunidade antes do intervalo com um remate de pé esquerdo para grande defesa de Wéverton mas as bases do jogo estavam mais do que lançadas para aquilo que seria o segundo tempo: o Flamengo a ter mais bola, a projetar-se para o ataque e a pressionar mais alto, o Palmeiras a procurar sempre as transições e o espaço na profundidade que ia ficando em aberto. Foi assim que, logo a abrir o segundo tempo, Gabriel Barbosa teve mais duas oportunidades para marcar (uma na área cortada para canto, outra na sequência de bola parada ao segundo poste) e Rony obrigou Diego Alves a grande defesa para canto após remate de longe.

Só mesmo algo “diferente” poderia mudar o rumo do jogo e esse “diferente” foi a quebra física dos dois médios centro do Palmeiras, Danilo (que foi substituído logo por De Paula) e Zé Rafael (entrou a seguir Danilo Barbosa). A partir daí, e já com Michael em campo, começou a haver outros espaços entre linhas e foi nesse momento que se construíram condições para Arrascaeta entrar no jogo e desequilibrar, com a assistência para o empate de Gabriel Barbosa num remate rasteiro junto ao poste na área (73′) e outro passe a isolar Michael na área, neste caso descaído na direita, mas com o remate a sair ao lado (86′).

As decisões seguiam para prolongamento, com Abel Ferreira a tirar de campo o esgotado Raphael Veiga para colocar Deyverson em campo. E foi assim que, à semelhança do que tinha acontecido na última final da Taça dos Libertadores, “sacou” uma versão de Breno Lopes II: o Verdão subiu um pouco a linha de pressão, Andreas Pereira teve um erro de palmatória perdendo a bola sendo o último elemento e o avançado que passou por Portugal não perdoou isolado frente a Diego Alves (95′). Ao contrário do que tinha acontecido no tempo regulamentar, o Flamengo já não tinha mais gasolina no depósito para recuperar da desvantagem e o Palmeiras, dando de novo uma lição tática e de estratégia dentro das opções que tinha em campo, segurou mesmo um título histórico para o clube… e para um português.