Lisboa revive esta sexta-feira um episódio quase esquecido que marcou a segunda década do nosso século XX e durante o qual grupos vanguardistas e conservadores mediram forças no campo das artes plásticas. A partir das 10 da manhã na Faculdade de Belas-Artes, e depois às 15h00 na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), investigadores e professores universitários vão falar sobre a Questão dos “Novos”, que há um século dominou atenções entre a elite ilustrada da capital.
Mais concretamente, propõem-se trazer à luz o Comício dos “Novos”, como ficou conhecida uma reunião pública de grande repercussão realizada na então sala de cinema Chiado Terrasse, a 18 de dezembro de 1921, em que os “Novos” da pintura modernista pretenderam derrotar os “botas-de-elástico” da pintura naturalista.
O episódio, segundo João Macdonald, um dos organizadores do colóquio desta sexta-feira, constituiu “o mais violento debate artístico e intelectual desde o escândalo de Orpheu em 1915”. Foi “a polémica que abalou a arte” portuguesa. Se a revista em que colaboraram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros tinha chocado as mentes passadistas — devido à “novidade formal e estilística nos domínios literário e artístico”, como escreveu a investigadora Patrícia Silva —, o “Comício dos Novos” também acenderia paixões na sociedade e na imprensa, mas dessa vez no que à pintura dizia respeito.
1921 foi um ano especialmente agitado e de alguma forma condensou à escala portuguesa os “loucos anos 20”. A I Guerra Mundial tinha terminado três anos antes, a I República assinalava 11 anos. Ao longo de 1921 saíram os English Poems de Fernando Pessoa, começaram a ser publicados o “Diário de Lisboa” e a revista “Seara Nova”, foi fundado o Partido Comunista Português, realizaram-se eleições legislativas, organizou-se o primeiro campeonato nacional de futebol, deu-se a carnificina da Noite Sangrenta em Lisboa. Para fechar, veio o Comício dos “Novos”.
Em conversa com o Observador, João Macdonald — que é jornalista e está a concluir um mestrado em crítica, curadoria e teorias da arte pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), com uma tese onde se debruça sobre o café Brasileira do Chiado e cabaret Bristol Club nos anos 1920 — explicou que foi dele a ideia de organizar o encontro desta sexta-feira, para assim assinalar o centenário da Questão dos “Novos”.
Acrescentou que o assunto está na penumbra e “não há um único estudo que lhe seja exclusivamente dedicado”. Segundo Macdonald, apenas duas obras aprofundam um pouco o episódio: Pacheco, Almada e ‘Contemporânea’ (1993), com coordenação de Daniel Pires, e A Sociedade Nacional de Belas-Artes – Um Século de História (2006), de Cristina Azevedo Tavares.
O colóquio é aberto ao grande público, com entrada gratuita, e tem organização da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (através do CIEBA — Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes), com colaboração da SNBA e do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa. Inclui comunicações sobre temas paralelos à Questão dos “Novos”.
Fernando Rosa Dias, professor em Belas-Artes e outro dos mentores do colóquio, vai falar dos artistas e intelectuais algarvios que participaram no modernismo, enquanto as investigadoras Raquel Henriques da Silva e Inês Silvestre abordam o tema das pinturas modernistas na Brasileira do Chiado. No próximo ano, segundo João Macdonald, será editado um livro com textos do encontro e recortes da imprensa da época.
Mas afinal em que consistiu A Questão dos “Novos”?
Terá sido uma rivalidade no campo das artes plásticas, mas aparentemente apenas um capítulo daquilo a que hoje chamaríamos uma guerra esquerda-direita. João Macdonald fez a síntese ao Observador. Tudo começa na primavera de 1921. A instabilidade política e social contamina as belas-artes. O pintor modernista Eduardo Viana é impedido de participar na Exposição Anual da SNBA, o mais importante certame de pintura em Portugal, montra comercial como não havia outra. O país era um deserto de galerias de arte e apenas o Museu do Chiado se dedicava à arte contemporânea.
Os nossos modernistas, que no dizer de Macdonald eram em certa medida uma periferia mental do que se passava em grandes centros como Paris e Milão, procuravam afirmar-se e tinham até, no que à pintura dizia respeito, um mercado crescente entre a burguesia urbana que, apesar da crise, queria comprar obras que lhe dessem estatuto.
“A resistência maior ao modernismo não é do público em geral, mas dos meios académicos e da própria SNBA”, explicou o investigador. “Ao dizer que Eduardo Viana não podia participar na exposição daquele ano, a SNBA enviou um sinal à geração modernista.” A exclusão não foi das obras concretas que Viana propunha, foi simbolicamente a exclusão do modernismo. “A SNBA quis por um travão e mostrar que eles é que decidiam o que era arte ou não. Quiseram ditar a sua visão da arte.”
Entre os responsáveis pela SNBA contavam-se antigos professores da Escola de Belas-Artes, por onde os modernistas tinham passado. Continuavam a defender o academismo naturalista, embora não se vissem como conservadores. Na expressão cunhada anos antes pelo caricaturista Christiano Cruz, eram os “botas-de-elástico” — literalmente usavam botas-de-elástico, símbolo de que estariam agarrados ao passado, até no vestir.”Pode-se dizer, de forma simplificada, que os nomes que dominavam as belas-artes desde a década de 1870, enquanto naturalistas, eram pessoas de esquerda. O naturalismo, sendo uma escola artística que pretendia mostrar a realidade, tinha subjacente um pensamento socialista, tal como Antero de Quental defendia”, contextualiza João Macdonald. “Ora, os modernistas em geral, embora o propósito deles não fosse político, eram monárquicos ou estavam de alguma forma ligados à direita política, ao Integralismo Lusitano.”
Durante meses, entre a exclusão de Eduardo Viana na primavera e o comício no Chiado Terrasse em dezembro, a imprensa vai narrar o caso e servir de palco ao debate — a rádio só chegaria na década seguinte. Toda a gente tinha opinião sobre o assunto, até porque a SNBA era uma instituição central no país. João Macdonald estudou a imprensa da época e concluiu que saíram muitas dezenas de artigos nos 15 diários que então eram impressos.
Entretanto, José Pacheko, que é sócio da SNBA e apoia os “Novos”, faz a polémica subir de tom ao propor a entrada de 180 novos sócios, com o objetivo de mudar os estatutos e o funcionamento da instituição. Ao lado dele estão Leitão de Barros, António Ferro, Almada Negreiros, Raul Leal, Fernanda Castro, muitos outros. A 18 de dezembro de 1921 tem finalmente lugar o Comício dos “Novos”, um encontro público de desagravo em que Almada Negreiros é um dos oradores principais.
Poderá dizer-se que na altura do comício os modernistas já sabem que a SNBA não vai ceder. O resultado da iniciativa, e da Questão dos “Novos” como um todo, salda-se em fracasso. O episódio que há um século marcou a vida pública portuguesa prolongou-se por mais alguns meses nas páginas dos jornais, mas os modernistas não conseguiram que os 180 novos sócios entrassem para a SNBA nem que as suas propostas estéticas de vanguarda fossem aceites pela elite.
Estava porém aberto o caminho para uma aceitação que viria a acontecer nos anos seguintes. A partir de 1925 a Brasileira do Chiado e o Bristol Club, substituindo-se de certa forma aos circuitos oficiais, convidaram alguns dos “Novos” para ali exporem em permanência: Almada Negreiros, Eduardo Viana, Jorge Barradas, António Soares, José Pacheko. A arte portuguesa nunca mais seria a mesma.
“Como se dizia, e bem, na época, já que estes artistas não eram convidados a entrar no Museu do Chiado, na altura dirigido por Columbano Bordalo Pinheiro, a Brasileira e o Bristol foram os nossos primeiros museus de arte moderna”, explicou João Macdonald. “Os proprietários eram pessoas ilustradas e quiseram patrocinar o modernismo. A partir de 1925, já não era preciso ir ao museu ou à SNBA. Foi um fenómeno que aconteceu em muitas outras cidades europeias.” Se os modernistas não tinham espaço nos salões oficiais, estavam agora nas ruas, à vista de todos.