Vale de São Fernando, Califórnia, 1973. Os EUA estão metidos até ao pescoço no atoleiro do Vietname e em grande convulsão social e política, e a OPEP prepara-se para fazer um embargo de petróleo aos países que apoiaram Israel na Guerra do Yom Kippur, que vai afetar severamente os americanos. Mas Gary Valentine, de 15 anos, só está preocupado com uma coisa: convencer Alana Kane, 10 anos mais velha, a namorar com ele. Alana era assistente do fotógrafo encarregue de tirar as fotos para o anuário da escola secundária que Gary frequenta, onde ele a viu e se atirou a ela de imediato. Eles formam o duo sentimentalmente complicado, etariamente desemparelhado e alegremente destrambelhado de “Licorice Pizza”, de Paul Thomas Anderson.

[Veja o “trailer” de “Licorice Pizza”:]

Gary (Cooper Hoffman, filho do falecido Philip Seymour Hoffman) era ator em criança e já percebeu que a carreira não vai sobreviver à adolescência, por isso agarra qualquer oportunidade de fazer dinheiro que lhe aparece pela frente. Alana (Alana Haim, do grupo homónimo, do qual Anderson já assinou vários vídeos), ainda vive com os pais e as irmãs (interpretados pelos seus pais e irmãs verdadeiros), não faz ideia do que vai fazer com a vida e sente-se simultaneamente divertida, perplexa e aborrecida com os constantes avanços de Gary. O que não a impede de lhe fazer ciúmes, e de ficar fula quando ele retalia.

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Gary e Alana passam todo o filme neste cabo-de-guerra amoroso, sem nunca terem o menor contacto sexual, ao mesmo tempo que vivem uma vertigem de peripécias descosidas, divertidas e desconcertantes. É o caso do negócio de colchões de água em que o fura-vidas Gary se mete, e que lhes vale, no auge da penúria de combustível, um encontro delirante com Jon Peters (Bradley Cooper), o ex-cabeleireiro, produtor de Hollywood e namorado de Barbra Streisand, que tem tanto de desvairado como de engatatão. (Além de Cooper, também Sean Penn, Tom Waits e Benny Safdie, este protagonizando o único subenredo em que o tom da fita se torna um pouco mais grave, destoando do resto, fazem breves aparições).

[Veja uma conversa com Paul Thomas Anderson, Cooper Hoffman e Alana Kane:]

Baseado em parte nas recordações de juventude de Gary Goetzman, que foi ator quando era criança e depois se tornou produtor, “Licorice Pizza” é um filme alegre e despreocupadamente desarrumado, tão descontraído, topa-a-tudo e inesperado como as suas duas personagens principais, uma história de amor obstinado de uma parte e recalcitrante da outra, filmada por Paul Thomas Anderson em borbulhante ritmo de mata-cavalos e sempre, sempre ao lado de Gary e Alana, irresistivelmente interpretados pelo expansivo Hoffman e pela pernilonga Haim. Eles não podiam ter sido mais bem escolhidos, porque estão nos antípodas dos estereótipos insipidamente glamorosos que abundam no cinema e na televisão, exibindo as pequenas imperfeições físicas que os tornam mais humanos e mais próximos de nós.

[Veja uma cena do filme:]

É claro que adivinhamos logo como tudo irá acabar entre Gary e Alana. Mas neste caso pouco importa, porque Paul Thomas Anderson mantém-nos sempre entretidos, divertidos e a saltar de um lado para o outro, de incidente em incidente, e deste sítio para aquele na companhia do par (há uma hilariante ida a Nova Iorque para promover na televisão uma fita em que Gary entrou e tem como estrela uma mal-disposta Lucille Ball). E o filme está instalado nos EUA dos anos 70 de forma tão firme e convincente, sem forçar a menor nota, seja na banda sonora, nos comportamentos ou no guarda-roupa, que quase parece que veio de lá metido numa máquina do tempo.

E quanto ao título, “Licorice Pizza”, não é um jogo de palavras aleatório, mas sim o nome de uma cadeia de lojas de discos que existiu na Califórnia entre 1969 e 1985. O seu dono, James Greenwood, era, segundo consta, tão ou mais desenrascado que Gary Valentine, e foi buscá-lo a uma piada feita pelo duo de cómicos e cantores “folk” Bud & Travis, que se referiram a um disco seu de pouco ou nenhum sucesso, como estando a ser vendido a lojas de comida para animais passando por “licorice pizza” (“pizza de alcaçuz”). Mal eles sabiam que ia dar um filme tão entusiasmante, tão folgazão e tão bom.