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Ricky Gervais e um dilema chamado "After Life"

Este artigo tem mais de 2 anos

Depois de ver a terceira temporada da produção da Netflix, Pedro Silva chegou a um conclusão: continua a ser fã do inglês, mas, na melhor das hipóteses, esta é uma série mediana disfarçada de boa.

O loop interminável que consome todos os episódios de "After Life" poderia ser um comentário sobre a falta de sentido da existência perante a perda do amor da sua vida, mas é mais guionismo preguiçoso do que qualquer outra coisa
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O loop interminável que consome todos os episódios de "After Life" poderia ser um comentário sobre a falta de sentido da existência perante a perda do amor da sua vida, mas é mais guionismo preguiçoso do que qualquer outra coisa

O loop interminável que consome todos os episódios de "After Life" poderia ser um comentário sobre a falta de sentido da existência perante a perda do amor da sua vida, mas é mais guionismo preguiçoso do que qualquer outra coisa

Com o lançamento a meio de janeiro da terceira e última temporada de “After Life”, Ricky Gervais termina a história do profundo luto de Tony Johnson que se propôs contar. Esta é, aliás, a primeira série de Gervais a chegar às três temporadas – “The Office”, “Extras” e “Derek” ficaram pelas duas temporadas, mais os famosos episódios especiais de Natal, enquanto “Life’s Too Short” teve apenas uma. No geral, mas sobretudo nos casos de enorme sucesso de “Office” e “Extras”, terá sido mais decisão criativa de terminar no ponto ideal do que falta de interesse dos canais. Também com “After Life” foi o seu autor a optar por seguir em frente (viram o que fiz aqui?) para o próximo projeto na Netflix, com o gigante do streaming a revelar que a série tinha ultrapassado a marca dos cem milhões de espectadores.

Agora vamos lá ver uma coisa que vai aborrecer algumas pessoas. “After Life” não é uma boa série. É, na melhor das hipóteses, uma série mediana disfarçada de série boa.

Se por um lado é fácil empatizar com a situação do protagonista e no profundo luto que carrega com a morte precoce da mulher vítima de cancro, mais difícil é tolerar a atitude deste com todos à sua volta – amigos, colegas e desconhecidos que trata constantemente abaixo de cão. Literalmente até, já que a única personagem digna do afeto de Tony é a sua cadela Brandy (que é absolutamente adorável e merece alguma espécie de Emmy canino).

[o trailer da terceira temporada de “After Life”:]

É igualmente complicado compreender porque é que toda a gente à sua volta atura o seu comportamento francamente desagradável e sem sinais de remorso ou vontade de mudar. Este é aliás outro dos grandes problemas da série – embora no último episódio (já lá vamos) Tony pareça começar a aceitar a realidade e começar a seguir a sua vida, todos os episódios até lá são incrivelmente formulaicos e repetitivos na estrutura:

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  • Tony vê vídeos da falecida mulher no computador (nem vou entrar na desconfortável questão de quantas horas de vídeo é que Tony captou da esposa ?);
  • Tony chega à redação do jornal onde trabalha e é agressivo com um ou vários dos seus colegas;
  • Tony visita o lar onde o pai estava e conversa (ou melhor, queixa-se da vida) com enfermeira Emma;
  • Tony vai em trabalho conhecer algum peculiar residente de Tambury, deixando sempre claro o seu desprezo e superioridade com o entrevistado;
  • Tony visita o cemitério e troca algumas palavras com a viúva do falecido vizinho de caixão (naquele que é um prodigioso trabalho de escrita de sinónimos, já que a conversa é sempre a mesma por outras palavras) e terminando o episódio com o protagonista a beber sozinho em casa a ver mais vídeos antigos da mulher.

Este loop interminável que consome todos os episódios poderia ser um comentário sobre a falta de sentido da existência perante a perda do amor da sua vida, mas é mais guionismo preguiçoso do que qualquer outra coisa. Outra questão ao nível da escrita e da realização é a inconsistência do tom da série, que alterna de forma errática entre um humor (quase sempre assente no bullying) e a vertente dramática, que ora funciona com alguns momentos genuinamente comoventes, ora se fica por cenas melodramáticas dignas de telenovela da tarde. Quanto a mim, faltou aqui o dedo de Stephen Merchant, com quem Gervais co-criou os brilhantes “The Office” e “Extras”, duas das maiores pérolas da comédia televisiva do século. Merchant tornou-se um interessantíssimo autor a solo, com destaque para o delicioso filme “Fighting With My Family” (de 2019) e a recente série “The Outlaws” que a BBC lançou no ano passado.

Sei que bati muito em “After Life”, mas expectativa é tudo na vida e acabamos por ser mais exigentes com os artistas de que gostamos e que admiramos. E como disse acima, a série é mediana e apesar destes defeitos apontados, há também coisas positivas. A começar pela impecável escolha musical e que só nesta terceira temporada conta com nomes como Bob Dylan, Radiohead, Cat Stevens, Death Cab For Cutie, Rod Stewart e Joni Mitchell. Gervais disse numa entrevista que foi a primeira vez que teve o orçamento amplo o suficiente para brincar com as suas bandas e músicas preferidas e estas acabam sempre por elevar as cenas em que são utilizadas. A relação do comediante com a música não é recente – nos idos anos oitenta, Gervais e o seu amigo Bill Macrae formaram a banda de new wave pop intitulada Seona Dancing que, apesar não ter tido grande sucesso chegou a ter um hit nas Filipinas com a faixa “More To Lose” que explodiu nas rádios e discotecas do país. (esta fica aqui de graça para vocês). Noutra nota pouco conhecida do seu passado, Ricky foi o manager da banda Suede durante um breve período, antes destes se tornarem famosos.

Apesar de "After Life", e quanto a Ricky Gervais, amigos na mesma e sempre interessado no seu próximo projeto

Outro dos pontos fortes de “After Life” é o elenco que dá vida às personagens que orbitam Tony, com destaque para Ashley Jensen (a enfermeira Emma), Diane Morgan (Kath) e Kerry Godliman que interpreta a falecida Lisa no infindável acervo de vídeos guardados no disco rígido e que nos ajuda a perceber a incapacidade de Tony em superar a sua perda. Estranhamente, nesta terceira temporada são abandonadas três personagens chave das duas primeiras, sem qualquer explicação – o espalhafatoso psicólogo de Tony, que em boa verdade pouco acrescentava à narrativa; Sandy, a (então) nova colega e jornalista do Tambury Gazette e talvez a pessoa mais normal e equilibrada naquela cidade, substituída por uma nova estagiária da redacção neste último capítulo; e finalmente Roxy, prostituta e vizinha de Tony e que é por várias vezes referenciada ao longo da temporada sem nunca aparecer, o que não só é confuso como uma pena, já que era uma das mais divertidas e interessantes personagens da série. Fica a dúvida se foram decisões criativas ou se a pandemia atrapalhou as agendas ao ponto de não conseguirem participar desta conclusão.

Falando em conclusão, é bom ver o protagonista cuja dor acompanhámos ao longo de três temporadas terminar a série numa nota mais positiva, aliviado pelo menos um pouco do peso que o carrega e um nadinha mais otimista em relação ao futuro. No entanto, a satisfação que essa conclusão traz acaba por ser um pouco deslavada por um último episódio que patina no piroso, uma espécie de equivalente televisivo a um post de instagram com foto de pôr-do-sol e uma frase de auto-ajuda lamechas por cima.

Temas como o luto, pela sua natureza interior, são difíceis de retratar em meios visuais como o cinema e televisão. Ainda assim, onde “After Life” falha outras antes já o tinham feito de maneira brilhante, como “Sete Palmos de Terra” (HBO), “WandaVision” (Disney+) ou “Bojack Horseman” (Netflix), esta mais sobre depressão e vazio emocional e que deixo como entusiásticas recomendações.

Quanto a Ricky Gervais, amigos na mesma e sempre interessado no seu próximo projeto, seja um novo especial de stand up (a última tour foi interrompida pela Covid-19 e retomada recentemente), uma das suas brilhantes apresentações de cerimónias de prémios ou uma futura série, de preferência a meias com Stephen Merchant.

Pedro Silva é comediante

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