O mal estar dentro da Ordem dos Médicos é antigo. Não é a primeira vez que o médico Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria, defende publicamente ideias contraditórias às apregoadas pela Ordem e pelo seu bastonário. Aconteceu durante o fecho das escolas, na altura em que a Direção Geral de Saúde avaliava se devia ou não avançar para a vacinação contra a Covid das crianças e jovens e agora, de novo, quando pede que se pare de vacinar os mais novos. A gota de água foi Marques Mendes e as declarações feitas na SIC, no domingo, quando acusou a Ordem dos Médicos de falar a duas vozes. Foi a motivação que faltava para uma reação mais dura dos seus pares.
Esta terça-feira, a CNN noticiou que 16 médicos enviaram uma carta a Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos, a que o Observador teve acesso. Solicitam “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias e pedem que se averigue se os artigos do código deontológico referentes à proteção individual e da saúde pública foram postos em causa com as declarações feitas numa entrevista televisiva. Em última instância, a decisão do Conselho Disciplinar poderá ser afastar Jorge Amil Dias do cargo de presidente do Colégio de Pediatria.
Um outro caso mediático que passou pelo Conselho Disciplinar foi o de Maria Margarida de Oliveira, médica e fundadora do movimento Médicos pela Verdade, condenada a uma pena de três meses de suspensão. A pena inicial era de 6 meses, mas o recurso que interpôs resultou numa redução, para metade, do tempo de suspensão.
No caso de Amil Dias, em causa está o facto de ter questionado “a competência profissional de colegas, pares médicos pediatras do Hospital de Dona Estefânia, do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, no âmbito da respetiva casuística e seguimento de doentes internados por Covid-19″. Na entrevista, onde começou por dizer que estava a falar em nome próprio e não pela Ordem, Amil Dias disse estranhar que os números de internamentos de crianças com Covid daquele hospital fossem mais elevados do que os de outras unidades do país.
Na carta enviada ao Conselho Disciplinar alega-se também que o pediatra fez “comentários não fundamentados” e que desvalorizam a metodologia dos estudos do CDC — Centers for Disease Control and Prevention, a agência norte-americana para a proteção da saúde.
Quem assina a carta?
O primeiro subscritor é o pneumologista Filipe Froes, coordenador do Gabinete de Crise da Ordem para a pandemia de Covid-19. Contactado pelo Observador, confirmou o envio da carta, mas preferiu não fazer comentários já que se trata de “uma questão do foro interno da Ordem dos Médicos”. Também o bastonário Miguel Guimarães, por uma questão de separação de poderes dentro da Ordem, prefere não fazer comentários a esta situação. A decisão final não passará por si, é da total responsabilidade do Conselho Disciplinar.
Na lista de subscritores encontram-se todos os membros do Gabinete de Crise, exceto um, um antigo membro desse órgão (que tem tido alguma rotação ao longo da pandemia) e cinco pediatras, dos quais três de cardiologia pediátrica. O segundo subscritor é António Sarmento, diretor do serviço de infeciologia do Hospital de S. João, onde está internada a criança de um ano, doente de Covid, ligada à uma ECMO.
Os pediatras Carla Rêgo, Luís Varandas e António Caldas Afonso também assinam a carta, assim como Fátima Pinto, cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta. O diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, é outro dos 16 signatários.
O que irritou os médicos?
Jorge Amil Dias começou por assinar uma carta aberta, com 27 signatários, onde apelava às autoridades de saúde que suspendessem a vacinação contra a Covid-19 de crianças e de jovens sem comorbilidades, a 25 de janeiro.
Dias depois, a 5 de fevereiro, a resposta da Ordem dos Médicos traduzia-se num comunicado onde se lia que, apesar de os casos graves de Covid-19 em crianças serem raros, reforçam a importância do caminho da ciência. E apontavam como exemplo a criança internada no São João ligada à ECMO. No próprio dia, o grupo de médicos onde Amil Dias se inseria sobe de 27 para 91 e volta a pedir a suspensão da vacinação de crianças.
No dia seguinte, domingo, Marques Mendes pôs o dedo na ferida: “Na vacinação de crianças, a Ordem dos Médicos fala a duas vozes opostas. O bastonário é a favor. O presidente do Colégio de Pediatria da Ordem é contra. Se o objetivo é semear a confusão, está perfeito. Se a intenção é ajudar os pais a decidir, então a Ordem devia corrigir esta situação.”
A reação é a carta que esta terça-feira seguiu para Maria do Céu Machado. No documento, os 16 médicos defendem que as afirmações de Jorge Amil Dias servem para “minimizar o impacto da doença Covid-19 na idade pediátrica”, para além de serem contrárias às posições públicas da Ordem dos Médicos, do seu bastonário e do Gabinete de Crise.
Pediatra Jorge Amil pede às autoridades que reapreciem vacinação das crianças
“As declarações públicas do Dr. Jorge Amil Dias, assim como as duas cartas abertas subscritas por outros médicos, além do visado, contribuíram para a descredibilização da Ordem dos Médicos e do bom nome do seu bastonário”, argumentam os signatários, que consideram que esta situação pode ter promovido a hesitação vacinal, intranquilidade e perda de confiança no processo da vacinação em geral e, em particular, no combate à pandemia.
O Observador contactou Amil Dias e o pediatra diz que nunca falou em nome da Ordem dos Médicos e que o bastonário sabe disso. “Conheço os estatutos da Ordem e sempre os respeitei.” Para além disso, estar “tranquilo” com a queixa apresentada, referindo que oficialmente não foi notificado de nada.