Uma carta aberta assinada por mais de mil alunos e pais lesados da agência de viagens Xtravel foi enviada esta quarta-feira ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, primeiro-ministro, António Costa, e ministro da Economia, Siza Vieira.
Assinada por 1.150 pessoas em menos de dois dias, a carta surge na sequência de denúncias sobre a falta de reembolso de uma viagem de finalistas a Espanha em março de 2020, vendida pela Xtravel a cerca de 10 mil alunos, mas cancelada devido à pandemia da Covid-19, só que o reembolso só pode ser pedido a partir de janeiro, cumprindo legislação criada em 2020, porém a agência entregou ao tribunal há duas semanas um processo de insolvência.
Perante o incumprimento da devolução, nos prazos legais, os lesados da XTravel puderam recorrer ao fundo de garantia das agências de viagens e turismo recorrendo ao Provedor do cliente e à comissão arbitral presidida pelo Turismo de Portugal, mas são muitos os pedidos a resposta dessas entidades a solicitar mais prova documental do pagamento da viagem.
“Um conjunto de dificuldades burocráticas tem gerado a recusa” daquelas duas entidades em aceitar a documentação apresentada como prova, denunciam, e que o ‘voucher’ a que tiveram direito até ao final de 2021 “não está a ser aceite por si só como prova do valor em dívida, apesar de indicar” no verso ‘voucher de crédito correspondente ao montante pago pelo client’ ou a referência ‘convertível em dinheiro a partir de 1 janeiro de 2022’.
Segundo os signatários da carta, o Provedor e Comissão Arbitral estão só a aceitar prova feita através de comprovativo bancário de um pagamento feito há dois anos por multibanco, mas a maioria das pessoas já não têm o respetivo talão e, os que o têm, já não se encontra legível, e tem sido pedido pelos bancos 15 euros por uma segunda via dos extratos bancários, havendo quem precise de cinco extratos porque o pagamento foi em prestações.
Como ainda mais grave, os signatários denunciam que “em dezenas de escolas do país” o pagamento, dessa viagem de 2020, foi feito diretamente às comissões de finalistas, em numerário, “não tendo a XTravel entregue qualquer comprovativo do pagamento”, nem tendo agora os alunos acesso a qualquer comprovativo bancário, porque faturas emitidas no site da Xtravel são também recusadas pela Comissão Arbitral e Provedor.
Lembrando que a lei que adiou para este ano a devolução dos ‘vouchers’ das viagens canceladas em 2020 procurou encontrar um equilíbrio entre a sustentabilidade financeira dos operadores económicos e os direitos dos consumidores, os alunos e pais defendem que, não obstante o contexto atual, não podem ser suprimidos ou eliminados os direitos destes últimos.
“Entendem os pais que a lei aprovada pelo Governo permitiu a esta empresa, durante dois anos, abrir novas empresas, integrar a XTravel numa nova empresa (a Xis-Family), efetuar aumentos de capital nestas empresas. O prazo que deveria ter sido usado para a empresa se preparar financeiramente para conseguir reembolsar os clientes lesados, serviu apenas para que, dois anos depois, os clientes serem confrontados com o incumprimento da lei, com o incumprimento na emissão de recibos, com o incumprimento na declaração da totalidade dos alunos que pagaram na lista de credores”, denunciam.
Criticando que à Xtravel nenhuma destas entidades pede comprovativos, os signatários da carta defendem que a mesma lei deveria também protege-los, mas estão a ser penalizados com a recusa dos meios de prova “quando, qualquer leigo facilmente constata que a empresa não emitiria um ‘voucher’ se o valor não tivesse sido pago, não registaria faturas não pagas no portal das Finanças, não colocaria na lista de credores pessoas que efetivamente não o fossem”.
Lembrando que a justiça deve ser igual para todos, e que o Estado tem a obrigação de assegurar tal igualdade, os signatários pedem uma intervenção do Presidente e do Governo, que garanta o cumprimento dos direitos dos alunos e pais lesados pela XTravel.
Segundo dados do Turismo de Portugal, a comissão arbitral recebeu este ano, até 3 de fevereiro, 226 requerimentos de intervenção relativos a reembolsos de cinco agências de viagens, relativos a viagens de finalistas, tendo o Fundo de garantia das agências de Viagens ativado seis pagamentos relacionados com a emissão de vouchers das viagens de finalistas, “todos suportados por decisões em tal sentido de instâncias de arbitragem de conflitos de consumo”, tendo sido pagos cinco processos num total de 1.910 euros.
A jurista da associação de defesa do consumidor Deco, Ana Sofia Ferreira, reconhece que pode “ser complicado” lesados que pagaram em numerário conseguirem a devolução, mas ressalva que cada caso é um caso e defende a importância de os lesados juntarem “tudo” o que têm que comprove o pagamento da viagem ainda não reembolsada.
Não existe legalmente a obrigação de entregar ao fundo de garantia um documento específico, como a fatura/recibo, explicou a jurista, mas o fundo é um sistema de reembolso, para situações de incumprimento das agências de viagens, cujo acesso depende de comprovar o pagamento, o que é feito por decisão do Provedor do Cliente ou da comissão arbitral.
No início deste mês, a Xtravel apresentou-se à insolvência na Comarca Lisboa Oeste, já depois de clientes denunciarem publicamente o incumprimento da devolução, estando em curso o processo de reclamação de créditos, após o qual são emitidas as listas de créditos reconhecidos e de créditos não reconhecidos (mas reclamados).
A carta aberta surge ainda após um grupo de lesados da Xtravel composto por cerca de 70 pais de finalistas de duas escolas da Guarda ter entregado no tribunal uma queixa-crime contra a Xtravel, solicitando ao Ministério Público (MP) que investigue sobre a prática de crimes de fraude fiscal, abuso de confiança e burla pela agência, e requerendo o reembolso da viagem.
A viagem de finalistas a Punta Umbria, Espanha, prevista começar em 28 de março de 2020, envolvia 10 mil alunos e foi tema de notícia nesse mês em que surgiram em Portugal os primeiros casos de covid-19, porque a agência Xtravel pretendia adiar a viagem para dezembro, e os pais, em protesto, enviaram uma carta aberta ao Governo, que acabou por interditar viagens de finalistas e ordenar às agências o reagendamento ou a emissão de vales, válidos até 31 de dezembro de 2021, período após o qual podiam solicitar o reembolso.