“Ainda tem treze segundos para condenar a Rússia”. A provocação partiu do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que se dirigia esta quinta-feira à bancada do PCP no Parlamento. Horas depois do início da invasão da Rússia à Ucrânia e das notícias das primeiras baixas, o PCP continuava – e continua – a ser o único partido que não condena claramente o regime de Vladimir Putin, dizendo condenar o “caminho todo” que levou à invasão e preferindo lembrar responsabilidades da NATO, da União Europeia e dos Estados Unidos, a quem esta guerra “servirá”.

É o discurso que os comunistas têm defendido nos últimos dias, durante os quais várias vozes do PCP garantiram que não haveria nenhuma invasão a ser preparada e ironizaram sobre o assunto. Ao mesmo tempo, iam colocando o foco na importância de “desanuviar” a escalada de tensão e promover um “processo de diálogo” para que se chegue a uma “solução pacífica para o conflito”, como se lia no editorial desta quinta-feira do jornal do Avante.

Ainda assim, quando Portugal amanheceu com as primeiras imagens de tanques e explosões, o Avante já estava publicado e por isso não havia posição atualizada do PCP sobre o assunto. No Parlamento, horas depois e após uma nota da Lusa com declarações de João Oliveira, surgia a primeira reação oficial de viva voz: Oliveira, que deixará de ser deputado e líder parlamentar quando os novos deputados tomarem posse, defendeu que é preciso “travar a escalada de confrontação política, económica e militar”.

E de quem é a responsabilidade por essa escalada? “É o problema da utilização da NATO como instrumento desses objetivos e o problema da subordinação da União Europeia à política belicista dos Estados Unidos e da NATO”, respondeu o parlamentar.

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E apontou às culpas de forma ainda mais direta aos Estados Unidos: a guerra, disse o deputado, “não serve aos ucranianos nem aos russos e tampouco serve aos restantes povos europeus. Mas serve ao Governo dos Estados Unidos e ao seu complexo industrial-militar”.

Oliveira reservaria, sim, algumas críticas a Putin — mas não exatamente pela invasão da Ucrânia. Por um lado, o dirigente comunista disse “registar o discurso recente de Putin”, com “afirmações que incorporam conceções próprias da Rússia czarista e que criticam decisões que, no quadro da União Soviética, resolveram a questão das nacionalidades”. Ou seja, o PCP não gostou do discurso nacionalista do presidente russo, dias antes de lançar a invasão, em que Putin criticava Lenine e a revolução bolchevique que derrubou o czar Nicolau II por ser, na sua leitura, “o autor e criador da Ucrânia”.

Por outro lado, o deputado comunista, que lembrou que “a Rússia é hoje um país capitalista” e não comunista, criticou o domínio das “elites e grupos económicos” no regime russo. Mesmo assim, sublinhou, não seria “expectável” que a Rússia aceitasse que o inimigo estivesse “acampado nas suas fronteiras” ou fizesse um cerco militar através de um alargamento cada vez maior da NATO. Ou seja, seguindo este raciocínio, as provocações viriam da NATO — e a Rússia teria apenas reagido.

Ironia e ataques no Twitter. Ferreira ao ataque

As reações que se foram ouvindo, ou lendo, entre os restantes dirigentes comunistas foram na mesma linha: condenação dos norte-americanos, lembrando casos como o da invasão do Iraque, que foi feita a pretexto da existência de armas de destruição maciça, que se viria  a revelar falsa.

Os comunistas têm, de resto, uma posição histórica de oposição aos Estados Unidos, seja pelo sistema capitalista e de oposição direta ao comunismo (em particular durante os anos da oposição ao bloco soviético, durante a Guerra Fria, e agora, apesar de Putin estar longe de poder ser classificado como comunista), seja pelo que descrevem como uma política de “militarização” e de ingerência noutros países. O tweet abaixo, que refere alguns exemplos, foi republicado por João Oliveira.

Mas, em termos de responsabilidades pelo conflito atual, pouco têm a dizer sobre a Rússia. No Twitter, o dirigente e vereador em Lisboa João Ferreira, que na quarta-feira também apontava para “a estratégia de alargamento e confrontação da NATO/EUA”, voltava à carga para lembrar que o PCP também tem defendido “os princípios do direito internacional e a carta da ONU”, com a partilha do comunicado do PCP e ironia à mistura: “Para os que não quiseram ler à primeira, uma segunda oportunidade”.

No Twitter da mais jovem deputada comunista e membro do Comité Central Alma Rivera encontrava-se mais uma perspetiva, com uma conclusão semelhante: apontando as violações ao acordo de paz de Minsk – que o PCP tem frisado que existiram desde que foi assinado há oito anos, mas que a Rússia rompeu definitivamente agora, com o reconhecimento das regiões separatistas de Lugansk e Donetsk – argumentava que se tem feito “tábua rasa de bombardeamentos a estruturas civis no Donbass” e acusava os média de não acompanharem regularmente os conflitos internacionais: “Um dos problemas é que a nossa história não começa a contar a partir do momento em que se torna notícia”.

As bombas mediáticas e a lavagem ao cérebro

Mas esta sucessão de declarações também não começa agora: nos últimos dias, dirigentes e militantes do PCP já vinham fazendo o mesmo discurso, atacando Estados Unidos, União Europeia e NATO enquanto garantiam que isso não equivaleria a defender o regime de Putin – que, no entanto, também não condenaram diretamente.

O presidente russo viria, aliás, esta quinta-feira argumentar que a Rússia precisou de invadir a Ucrânia tais eram as preocupações de segurança, para o país poder “sobreviver”. Mas, como as análises ao poderio militar demonstram, sem intervenção da NATO – que prometeu não intervir – o combate será desigual em todas as frentes, uma vez que a Rússia é o segundo país mais preparado em termos militares.

Um combate desigual em todas as frentes. Rússia ataca Ucrânia com “maior poderio militar desde a dissolução da União Soviética”

No primeiro comunicado do partido, esta semana, a “preocupação com os desenvolvimentos da situação no leste da Europa” também era acompanhada a crítica às “décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa”, que sentiria as suas fronteiras ameaçadas. Por outro lado, prosseguia o PCP, a situação não poderia ser dissociada do “golpe de Estado de 2014, protagonizado por grupos fascistas”, que depôs o então presidente pró-Rússia.

No Avante, que terá sido impresso ainda a invasão não tinha começado, as críticas aos Estados Unidos, e não à Rússia, multiplicavam-se. O “bombardeamento”, argumentava Filipe Diniz, da Organização Regional de Lisboa dos comunistas, é “mediático” e uma “autêntica lavagem ao cérebro”, e a condenação deve ser aplicada à “ação agressiva dos EUA”.

Na página ao lado, a jornalista Anabela Fino recordava a invasão do Iraque, entre outros exemplos, para apontar aos Estados Unidos e, apesar de descrever o regime russo como “capitalista”, criticava uma alegada “russofobia” e uma “demonização” do país de Putin, frisando que a Ucrânia se tem tornado “um laboratório para a extrema-direita”.

No resto das páginas do Avante noticiava-se o reconhecimento das “autodenominadas repúblicas populares” de Lugansk e Donetsk depois de “sete anos de agressão” e criticava-se a “ação do imperialismo norte-americano nas últimas décadas”.

Apesar de reconhecer que a tensão militar no Leste da Europa suscitou “justas apreensões”, o órgão do PCP argumentava que a “avalanche mediática – não confundir com noticiosa ou informativa, pois é coisa bem diferente” passou ao lado do “fundamental”: o “autêntico cerco militar que EUA e NATO vêm protagonizando e apertando” nada terá a ver com os interesses do povo ucraniano; a natureza defensiva da NATO é “um mito”, até por ter servido para combater “a ameaça comunista, permanentemente brandida” e participado “em golpes de Estado e no apoio a ditaduras fascistas”.

Ficava, assim, clara a posição do PCP: de críticas às ações da NATO e dos norte-americanos e apelo à paz, mas sem apontar o dedo à Rússia. Dias antes, um tweet replicado pelo ex-deputado Miguel Tiago garantia: “Prometeram-nos uma invasão da Ucrânia pela Rússia e o que estamos a assistir é ao contrário”.

Ainda no Twitter, o deputado (deixará de o ser com a posse do novo Parlamento) e dirigente António Filipe ironizava, na semana passada, com a suposta ficção da invasão à Ucrânia, num tweet – “Biden decidiu que a Rússia tem de invadir a Ucrânia quer queira quer não queira. Se não invadir a bem terá de invadir a mal” – e noutro – “A guerra da Ucrânia não será uma recreação televisiva da Guerra dos Mundos do Orson Welles? Recriação, queria eu dizer”.