Colin Farrell, que em “The Batman” interpreta o vilão Penguin, foi proibido pela produção do filme de mostrar a personagem a fumar. Isto apesar do cigarro na ponta de uma fina e longa boquilha ser um dos elementos da caracterização do vilão. Se este neo-puritanismo censório que varre os EUA e contamina o cinema americano estivesse em vigor no Japão, “Drive My Car”, de Ryûsuke Hamaguchi, teria muito a perder, já que o cigarro é um elemento essencial para a criação de um clima de confiança e cumplicidade entre os dois protagonistas da fita, ambos fumadores: Yusuke (Hidetoshi Nishijima), um renomado ator e encenador, e a jovem Misaki (Tôko Miura), a motorista designada para o conduzir enquanto ele está em Hiroshima a trabalhar num festival de teatro local.
Além disso, o filme perderia um dos seus planos mais bonitos, o dos braços de Yusuke e Misaki saindo em paralelo do tejadilho aberto do Saab Turbo 900 vermelho do artista, recortados contra o céu do final da tarde e segurando ambos um cigarro. E se Yusuke guiasse um automóvel elétrico ao gosto dos ambientalistas picuinhas, em vez do seu velho e robusto Saab, não teríamos história em “Drive My Car”, porque assim Misaki não ganharia a simpatia dele ao mostrar-lhe que não só conduz bem como também é perfeitamente capaz de guiar um carro dos anos 80 com o volante à esquerda e não à direita como é normal no Japão, e com o qual não tem a menor familiaridade.
[Veja o “trailer” de “Drive My Car”]
O tabaco e um carro europeu com bastantes anos e muita rodagem são, assim, dois dos componentes fundamentais de “Drive My Car”, que Hamaguchi e o seu argumentista Takamasa Oe adaptaram de um conto de Haruki Murakami. O filme funciona em dois tempos. No primeiro, que abrange os 40 minutos iniciais e vai até aparecer o genérico (que surge invulgarmente tarde, mas “Drive My Car” dura três horas), conhecemos Yusuke e a mulher, Oto (Reika Kirishima), mais nova que ele e argumentista de televisão. Um dia, Yusuke, que ia viajar em trabalho, vê o seu voo ser cancelado por causa do mau tempo, volta para casa sem avisar e surpreende Oto com outro homem, um jovem ator. Em vez de confrontar os amantes, sai discretamente. E quando mais tarde se prepara para ter uma conversa séria com a mulher, ela morre de súbito com um AVC.
No segundo, passado dois anos mais tarde, reencontramos Yusuke ao volante do seu carro rumo a Hiroshima, onde vai encenar uma produção multilingue de “O Tio Vânia”, de Tchékhov, com atores vindos de várias paragens da Ásia, incluindo uma sul-coreana muda que terá um papel muito importante no enredo. Lá chegado, a direção do festival de teatro diz-lhe que, por obrigação contratual e motivo de segurança, ele não pode guiar o carro, e designam-lhe Misaki para o conduzir. Yusuke não gosta porque costuma aproveitar o tempo de condução para ensaiar as peças, ouvindo-as em cassetes que a mulher gravava, e não acredita que Misaki, uma rapariga tão nova, seja capaz de conduzir o seu carro. Mas ela mostra-lhe que sim logo à primeira vez.
[Veja uma entrevista com Ryûsuke Hamaguchi:]
“Drive My Car” alterna entre os ensaios de “O Tio Vânia”, onde seguimos os métodos de Yusuke e as várias fases de criação da peça (um dos atores escolhidos é o jovem que era o amante da sua mulher, a quem Yusuke entrega, de surpresa, o papel principal da peça, abdicando de o fazer, aparentemente por vingança, já que o rapaz esteve envolvido num caso de polícia grave e um papel como o de Vânia é de uma responsabilidade grande demais para alguém na situação pessoal e profissional dele), e as longas viagens de ida e volta de carro em que o actor e encenador e a sua motorista vão, pouco a pouco, travando conhecimento, empatizando e ganhando confiança um num outro.
Denso de texto como é proverbial no cinema do autor de filmes tão abundantes em cavaqueira como “Happy Hour: Hora Feliz” e “Roda da Fortuna e da Fantasia”, mas nunca redundante no verbo ou obeso de diálogo, “Drive My Car” é rico de níveis de narração e reflexão (um deles sobre o trabalho do ator e a representação), de emoções em intersecção, de paralelos sobre os vasos comunicantes entre a arte e a vida (o realizador serve-se da peça de Tchékhov para ilustrar e amplificar os estados de alma de Yusuke) e de diálogos que iluminam o comportamento, as angústias, as feridas interiores e a mais escondida intimidade das personagens. E tudo isto sem que Hamaguchi apresse seja o que for ou perca, por uma vez que seja, ao longo das três horas do filme, o controlo do ritmo, a noção do tempo, o domínio do tom e da expressão, a clareza no contar e o norte da história.
[Veja uma cena do filme:]
No âmago dramático de “Drive My Car” encontram-se a repressão e a reserva emocional características dos japoneses. Yusuke e Misaki sublimam as suas dores pela conversa, entre muitos cigarros, e as suas respectivas catarses são finalmente consumadas perante uma paisagem invernosa e desolada, encenadas e filmadas por Hamaguchi com um máximo de impressão num mínimo de expressão, enlaçando as duas personagens numa mesma convulsão confessional. É um momento tão profundamente pungente como rigorosamente contido, sem o menor fogo de artifício melodramático, em que Hidetoshi Nishijima e Tôko Miura chegam ao topo das suas interpretações, notáveis de moderação eloquente, subtileza sugestiva e introspeção expressiva.
Distinguido apenas com o Prémio de Melhor Argumento em Cannes, quando devia ter ganho a Palma de Ouro, “Drive My Car” está agora nomeado aos Óscares de Melhor Filme, Realizador, Argumento e Filme Internacional. Se houvesse justiça no cinema, Ryûsuke Hamaguchi saía de Hollywood com os quatro, a fumar uma valente cigarrada e num Saab Turbo 900 do século passado.