O ator e encenador Jorge Silva Melo, que morreu nesta segunda-feira em Lisboa vítima de doença oncológica, tinha 73 anos e viveu mais de 50 anos nos palcos. Começou como amador no fim da década de 60, estudou cinema em Londres, foi assistente de Peter Stein em Berlim, fundou a companhia Artistas Unidos em 1995. Deixa ensaios e livros de memórias, exposições e filmes documentais — mas foi nas artes de palco que distinguiu, com alguns dos espetáculos mais marcantes das últimas décadas. Eis uma lista possível das peças da vida dele.

“Anfitrião”

Escrita por António José da Silva, é considerada a primeira peça de Jorge Silva Melo enquanto ator, apesar de ter feito pela menos uma outra antes desta: Avejão, de Raul Brandão. Tinha 20 anos, frequentava o curso de Filologia Românica e fundara o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, juntamente com Luís Miguel Cintra — que aqui entrou como encenador e ator. Foi em maio de 1969 no Teatro Vasco Santana, então existente na Feira Popular de Lisboa. Ao lado deles, também em cena, estavam Eduarda Dionísio e Ermelinda Duarte.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Ninguém fazia clássicos em ’69, ninguém fazia António José da Silva, ninguém fazia Molière, eram malvistos pelos poderes instituídos”, disse Silva Melo numa entrevista publicada no ano passado. “Este espetáculo marcou toda a gente da minha idade e foi uma surpresa de invenção, de alegria, de novidade.” A RTP chegou a registar imagens para as exibir nos noticiários. É a partir destas experiências que em 1973 vem a nascer o Teatro da Cornucópia.

“Oresteia”

Depois de ter estado em Inglaterra no início da década de 70 para estudar com uma bolsa da Gulbenkian na London School of Film Technique, Jorge Silva Melo regressou a Lisboa para se dedicar ao cinema (foi assistente de realização de António-Pedro Vasconcelos e de Alberto Seixas Santos) e a seguir envolveu-se na fundação da Cornucópia, de que veio a sair em 1979. Parte então para Berlim, onde ficará por um ano, e aí trabalha como assistente de Peter Stein, um dos mais destacados encenadores europeus. Faz Oresteia, de Ésquilo, a triologia clássica numa versão rente ao original mas com mensagem para o momento que se vivia. Nada menos que nove horas e meia de duração.

“Um espetáculo genial”, disse Silva Melo numa entrevista em 2017. “A transformação das Erínias em Euménides era, no espetáculo do Peter, a morte do Exército Vermelho, o grupo dos Baader-Meinhof, a morte mesmo. A prisão dos Baader-Meinhof [grupo extremista de esquerda da Alemanha Ocidental] tinha sido uns anos antes. Era o fm de todo o ímpeto revolucionário. A domesticação, a entrada na democracia ditada pelos deuses. Aí já não estávamos nada a pensar nas fraturas da pequena burguesia, mas no fm do momento revolucionário.”

“António, Um Rapaz de Lisboa”

Crónica da juventude lisboeta da década de 90, com vida amorosa, trabalho e toxicodependência em pano de fundo, marcou uma fase desencantada da vida de Jorge Silva Melo, em que as oportunidades de trabalho escasseavam. Serviu-lhe também de arranque para criar os Artistas Unidos, em 1995, o grupo de teatro que dirigia até hoje. António, Um Rapaz de Lisboa começou como ideia para uma série da RTP, mas não se concretizou, depois esteve na origem de um seminário de escrita teatral no âmbito dos Encontros ACARTE (da Fundação Gulbenkian) e veio a estrear-se no Grande Auditório da Gulbenkian a 18 de setembro de 1995, com reposição no Teatro Tivoli, no ano seguinte.

Direção de Silva Melo, produção de Yvette Centeno e participação de Lia Gama, Rita Tomé, Manuel Wiborg e Paulo Claro, entre outros. A peça foi editada em livro e finalmente deu origem a um filme, em 1999. “António é um rapaz de Lisboa que tenta sobreviver como pode na grande cidade. Nem rico nem pobre, nem a trabalhar nem desempregado, nem marginal nem integrado”, dizia a sinopse.

“Num País Onde Não Querem Defender os Meus Direitos, Eu Não Quero Viver”

O título e a interpretação foram marcantes e ficaram na história dos Artistas Unidos. A partir da novela Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist, Silva Melo criou um monólogo para Paulo Claro. A estreia deu-se em julho de 1997 no Festival X, no Espaço Ginjal (Almada) e além da digressão por 12 localidades esteve em 2000 no Espaço A Capital, no Bairro Alto, onde então estavam sediados os Artistas Unidos.

“Jorge Silva Melo e Paulo Claro optaram por transformar a novela de Kleist num espetáculo para um só intérprete. A adaptação é excelente. A fidelidade ao texto original é grande, apesar dos cortes necessários para a construção de um espetáculo de uma brevidade notável”, escreveu o crítico João Carneiro no Expresso, em 1997.

“Gata em Telhado de Zinco Quente”

(foto: Jorge Gonçalves)

Foram vários os textos de Tennessee Williams que Silva Melo encenou nos últimos anos. Primeiro, Gata em Telhado de Zinco Quente, que se estreou em setembro de 2014 no Teatro Viriato, em Viseu (com Catarina Wallenstein, Rúben Gomes, Américo Silva, Isabel Muñoz Cardoso, João Meireles, João Vaz, Tiago Matias, Vânia Rodrigues, Rafael Barreto e ainda Inês Laranjeira e Margarida Correia). Seguiram-se Doce Pássaro da Juventude (2015), Jardim Zoológico de Vidro (2016), A Noite da Iguana (2017).

Sobre a peça que ficou para sempre célebre no filme de Elia Kazan com Elizabeth Taylor e Paul Newman, escreveu Silva Melo: “É uma tragédia: a passagem do mundo velho a um novo que não há meio de nascer. No trágico Sul de Tennessee Williams tudo se agita em volta do dinheiro. Será possível devolver ao teatro aquilo que aparentemente o cinema fixou para sempre? Será possível voltar a fazer estas peças sem as cores esplendorosas de Hollywood?”.

“A Máquina Hamlet”

(foto: Jorge Gonçalves)

Foi em inícios de 2020, mesmo antes da pandemia, que Jorge Silva Melo montou o clássico de Heiner Müller no Teatro da Politécnica, sede dos Artistas Unidos, em Lisboa. A tradução era assinado pelo próprio e por Adélia Silva Melo, a irmã mais velha, que quando Jorge Silva Melo era criança o levou a descobrir o teatro e o cinema. Versão com Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, Inês Pereira, João Estima, João Madeira, João Pedro Mamede e José Vargas.

“Ainda li este texto manuscrito, passado clandestinamente da antiga RDA até à casa de Jean Jourdheuil no Bolulevard St Germain, em Paris, onde tantas noites ouvi Heiner conversar bebendo uísque e café até nascer o dia”, escreveu, quando da estreia. “Eis que chega a altura de o lembrar. De o fazer com atores novos com quem quero conversar sobre o que perdemos, o que quisemos, o que tentámos, o que traímos, o que não soubemos, o preço desta vida que lhes deixamos, e as mulheres.”