E então, no exato instante em que o rap e o hip-hop e mesmo o reggaeton e outros géneros latinos conquistaram as tabelas de vendas e o rock’n’roll começou a perder relevância para as gerações mais novas, a tornar-se coisa de velho revivalista, vieram as raparigas – que até então eram escassas e condenadas, na maior parte dos casos, a papéis secundários – e salvaram-no: de Julia Jacklin a Nilüfer Yanya, as guitarras voltaram a ser rainhas; só que, desta feita, rainhas nas mãos de rainhas.

Podemos ser tentados a concluir que estas moças não têm sentido de timing: o riff já não é a ponte privilegiada de acesso ao topo, não há pote de ouro no fim do arco-íris de um solo – se quisessem ser verdadeiras estrelas era mais fácil vestirem roupa curta, bambolear o rabo, fazer rimas sobre como se é incrível e os homens que se saca.

Mas nem toda a gente quer ser Nicki Minaj ou Rosalía. E há um certo tipo de emoção, uma zanga com o mundo, uma morrinha existencial, certas catarses, que assentam bem ao rock’n’roll – isto não significa que não possam ser aplicadas a outros registos (Little Simz é mestre a exprimir as emoções mencionadas, e faz hip-hop), o que significa é que o rock já tem historial com as ditas emoções.

[ouça o álbum “PAINLESS” na íntegra através do Spotify:]

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Rock pode ser diminutivo de rock’n’roll, mas em 2022 é um termo tão impreciso que permite abranger os mais vastos territórios musicais: Miss Universe, a estreia de Nilüfer Yanya (em 2019), era uma valente concatenação de geografias improváveis e supostamente incompatíveis: o velho indie rock dormia ao lado do soft rock dos anos 80, saxofones suaves amancebavam-se com guitarras lo-fi, batidas surgiam pelo meio enquanto do nada surgiam falsas faixas de anúncios à indústria da wellness.

A wellness não é propriamente o estilo de vida de Yanya, mesmo que o seu terceiro álbum (sucessor de Inside Out, do ano passado), acabado de lançar, se chame PAINLESS: aqui nada parece estar bem, e a “pain” (“dor” em português) está por todo o lado. Não de forma excessiva como com o gótico dos anos 80 (em que o negrume era praticamente uma parafilia), mas sub-reticiamente, em cada esquina de um verso, à entrada de um refrão, nas entrelinhas: Yanya não está, ou pelo menos quando fez PAINLESS não estava, lá muito well.

A primeira vez que esse negrume se apresenta de forma clara é em “Stabilize”, o quarto tema, com guitarras angulares em staccato a permearem um ambiente reminiscente do pós-punk; no refrão, Yanya canta:

“There’s nothing out there
for you and me
I’m going nowhere
until it bleeds”

Enquanto as guitarras se amontoam e a voz se espraia com desespero contido. Mas já antes, em “Shameless”, ficámos preocupados com o masoquismo da rapariga: canção lenta, com um efeito flanger na guitarra que a deixa a meio caminho entre uma canção de Sade e uma balada dos Cure, desce à auto-punição na linha “You can hate me/ If you feel like”, que antecipa o admirável pós-refrão. São quatro versos e os três primeiros estão lá para o murro da frase final:

“And when you call it’s shameless
In these four walls I’m faithless
Like when you caught me, graceless
Until you fall it’s painless”

“Until you fall it’s painless” – faz lembrar aquela piada que se contava em “La Haine”, admirável filme de estreia de Mathieu Kassovitz e que revelou Vincent Cassel: um tipo cai do 15.º andar (é possível que fosse outro), e quando passa pelo 14.º pensa para si mesmo “Jusqu’ici tout va bien” (traduzindo: até agora vai tudo bem), e assim sucessivamente a cada andar enquanto vai dizendo para si mesmo “O importante é aterrar bem”. Até cair não dói: o tipo de frase que é dita por quem já está a sofrer e já está a cair e sabe perfeitamente que não vai fazer nada para impedir a queda, vai continuar a repetir o comportamento que a trouxe aqui, a este 15.º andar, até agora vai tudo bem, até cair não dói.

Mas PAINLESS abre sem dor, porque “The dealer” é, na sua simplicidade minimal, um espanto: strumming de guitarra acústica e uma batida infecciosa bastam para as orelhas empinarem e a anca sentir comichão – quando o baixo entra, quase um minuto depois da canção começar, quase dá para começar uma revolução. Se no Maio de 68 se descobriu que por debaixo do pavimento estava a praia, em “The dealer” descobre-se que por baixo da batida e da linha de baixo está ambiguidade:

“I need some time to work out, who this is?
I need to know now who I’m dealing with
I miss the kind of patience that breaks your heart
Baby, it’s me that’s taking us apart”

Yanya, que aqui canta desta maneira para se apresentar confusa, mas não a cair, embora pareça ter saudades de cair.

Se ficamos de queixo caído e rabo cansado com a abertura do disco, o resto deixa-nos caídos e existencialmente de rastos. As guitarras angulares regressam em “Midnight sun”, uma canção cujo entrelaçar da melodia com a progressão de acordes lembra os Radiohead da viragem do milénio – até ao momento em que entra a guitarra acústica e a canção cresce, ameaçando explodir, recuando de novo à sua angústia minimal.

A menção aos Radiohead não é gratuita: a alienação, o sentimento de estar perdido na geografia emocional, de procurar sentido num labirinto de perguntas, de incapacidade de vestir bem a própria pele, tudo isto são temas caros a Thom Yorke e que estão presentes em PAINLESS – bem como a matriz do rock dos anos 90, do indie-rock às guitarras grunge que surgem quase no fim de “Midnight sun”.

https://www.youtube.com/watch?v=d36gGaOtT-A

Nilüfer Yanya não é uma imitadora, contudo. O seu charme reside na improvável combinação de cartas que ela traz para a mesa: uma voz que lembra Sade mas é colocada num template rock que, por sua vez, se recusa a ser rock no sentido tradicional: há batidas eletrónicas em fundo, baladas, canções mais agitadas e uma quase total ausência de berros (elemento distintivo do rock, aqui estranhamente ausente). Estas canções soam a muita coisa – mas Yanya não soa a ninguém exceto Yanya.

Fazer as coisas à sua maneira parece ser um mote de Yanya – quando ela tinha vinte anos foi convidada por Louis Tomlinson, dos One Direction, a fazer parte de uma girl band que este pretendia criar e que, dizia, ia tomar conta do mundo. Yanya disse que não e, passado pouco tempo, Tomlinson foi pai e preferiu ficar a tomar conta da criança em vez de criar uma girl band para tomar conta do mundo.

Esse não era o universo musical que interessava a Yanya – o que não admira, se tivermos em consideração que nasceu numa família com créditos artísticos: o seu tio Joe é músico e produtor (foi no estúdio dele que ela gravou o seu disco de estreia, Miss Universe)  enquanto a mãe é designer têxtil e pintora e o pai (de ascendência turca) já exibiu os seus quadros no British Museum.

Pouco tempo depois de recusar juntar-se à girl band que Tomlinson nunca criou, Yanya lançou os primeiros EPs por si mesma e em breve veio a oferta para gravar Miss Universe. A progressão para PAINLESS (menos géneros, mas mais coesão, menos salada de fruta, mas mais introspecção) revela uma voz extraordinária, empenhada em fazer grandes canções que se recusam a ser só rock. A avaliar por PAINLESS, Yanya pode não estar lá muito bem – mas as suas canções estão ótimas.

Nilüfer Yanya atua no festival NOS Alive a 7 de julho