Os cadáveres nas ruas da cidade ucraniana de Mariupol já são tantos que nem todos chegam a ser enterrados nas valas comuns. Os corpos vão servindo de alimento aos cães vadios e aos animais de estimação que ficaram para trás quando a população em fuga — a que conseguiu fugir antes dos intensos bombardeamentos — saiu da cidade. Agora, esses mesmos cães servem de alimento aos sobreviventes.
“Vimos um cão vadio e ele também já não estava bem”, contou Alexandr Volodko, um estudante de 21 anos em Mariupol, ao The Telegraph: “Estávamos tão desesperados que o cozinhámos. Estávamos cheios de fome e eu tenho vergonha de contar isto”. O nós a que Alexandr se refere é ele e a mãe, uma mulher doente de quem o estudante tem de cuidar. O pai desapareceu há uma semana. Há muito tempo que não vê os amigos.
Os repórteres do Observador em Kiev também conheceram um casal de médicos ucranianos, Constantino e Ludmila, que fugiram do cenário dantesco em Mariupol. No primeiro dia de guerra, ofereceram-se à força de defesa territorial, mas foram dispensados. Acabaram por encontrar um abrigo num complexo desportivo subterrâneo com cerca de 4.000 pessoas, das quais 2.500 eram crianças.
Passaram a dormir sempre nele, voluntariando-se para prestar apoio médico a quem necessitasse — ambos tinham experiência em contexto de guerra. Mas sempre que iam a casa, duas horas por dia, para tomarem banho, deparavam-se com “edifícios destruídos, filas para farmácias, o comércio todo destruído e os cadáveres”, contou o jornalista Pedro Jorge Castro. “Deixou de ser possível fazer funerais”, contou ele na Rádio Observador: a solução passou a ser “atar as mãos e os pés e enterrar em algum lado para não ficarem à mercê dos cães“.
Os parques infantis onde as crianças brincavam antes da invasão pela Rússia servem agora de cemitério, conta o mesmo jornal, que está a comunicar com algumas das 100 mil pessoas que permaneceram em Mariupol, agora sob controlo russo, através das redes sociais. Foi num desses parques que se enterrou o corpo de Antonina Alekseevna Bakhchisaray, que morreu aos 93 anos, vítima da guerra na Ucrânia, depois de ter sobrevivido à II Guerra Mundial e à ditadura estalinista.
Uma das pessoas que ficou para trás em Mariupol é a mãe de Yevheniia Kudria, que fugiu da cidade há apenas alguns dias. Ao The Telegraph, a mulher de 24 anos transmite as descrições que a mãe lhe tem feito pelo telefone: “Há o cheiro de cadáveres e um cheiro a queimado no ar. As pessoas simplesmente são enterradas nos jardins à frente das casas”.
A própria Yevheniia testemunhou esse cenário antes de partir: “Muitos cadáveres, partes do corpo despedaçadas, grandes danos e carros a arder“, recorda em entrevista. Quem ficou vive “nas paredes que sobraram”, dormem no chão, comem uma vez dia. E algumas esperam pela morte debaixo dos escombros, sem ninguém que as acuda.
As imagens da destruição generalizada em Mariupol também estão a ser transmitidas na televisão russa, mas contextualizadas a favor da propaganda de Vladimir Putin. Um vídeo partilhado pela CNN mostra uma jornalista a descrever os vídeos como sendo imagens “muito tristes, claro” da destruição infligida pelos próprios ucranianos à cidade no oblast (divisão administrativa territorial) de Donetsk: “Os nacionalistas, à medida que se retiram, estão a tentar não deixar pedra sobre pedra“.
Na verdade, os prédios deixados em ruínas e as ruas dizimadas são o resultado dos intensos bombardeamentos das forças militares russas, enviadas pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, desde que invadiu a Ucrânia naquilo a que o regime chama uma “operação militar especial”. Segundo os ucranianos, os russos estão a usar mísseis balísticos de longo alcance e artilharia para continuar a destruir a cidade — ou o que resta dela. Mas não é essa a narrativa adotada pela comunicação social do país invasor.
A responsável pela equipa de direitos humanos da ONU na Ucrânia disse esta sexta-feira que há cada vez mais evidências — incluindo imagens captadas via satélite — que dão conta da existência de valas comuns na cidade sitiada de Mariupol. Uma delas, segundo as informações recebidas, terá cerca de 200 corpos. “Temos cada vez mais informações sobre valas comuns [em Mariupol]”, disse Matilda Bogner, citada pela Sky News. De acordo com a mesma fonte, mais de 1.035 civis morreram na Ucrânia desde que a guerra começou.
Só no Teatro Mariupol, alvo de um ataque russo na semana passada, as vítimas devem ascender às 300, segundo o balanço que a câmara municipal preparou com base em testemunhas oculares e que publicou no Telegram: “Não quero acreditar neste horror. Até o fim quero acreditar que todos conseguiram escapar. Mas as palavras daqueles que estavam dentro do prédio no momento desse ato terrorista dizem o contrário”, diz a publicação.