O conceito
Há meia dúzia de anos, ouvindo falar em leite de tigre, a maioria de nós ficaria encucado, a pensar como diabo se ordenha um gato daquele tamanho. Mas depois o ceviche virou moda. Aprendemos então que aquilo não é laticínio nem felino, é apenas o sumo cítrico da marinada com que os peruanos preparam o peixe, e que ninguém corre o risco de morrer esgatanhado no processo. Hoje, em Lisboa, o prato nacional do Peru tem a ubiquidade do bitoque, e se vos disser que os últimos cinco restaurantes que experimentei na cidade tinham ceviche, temo estar a pecar por defeito.
Entre eles está o Ni Michi, novidade recente da LX Factory e exemplar da vaga latino-americana que inundou Lisboa. Ora, Ni Michi, é expressão peruana para “nada”, mas também a forma descontraída de dizer “não há problema”. Com base nesta trivia, concluo que o ponto de partida da carta há-de ser o Peru. Mas o Ni Michi vai mais longe e promete uma ementa “composta por pratos tradicionalmente latino-americanos, preparados por chefes de cozinha nativos”. Acontece que a Latina América, como bem nos ensinam os Jafumega, é uma coisa imensa, vai “do Paraguai a Porto Rico / Salvador às Honduras / da Bolívia à Guatemala / Argentina ao Chi-i-i-i-le”, e um menu onde se pretenda enfiar tudo isso ficará sempre pela caricatura. O que não é necessariamente mau, se o que se pretende é criar a experiência aproximada a um certo imaginário de sabores, ritmos e cores tropicais, numa casa que — percebo à chegada — é meio restaurante, meio bar de música ao vivo. É a parte dos “cozinheiros nativos” que me intriga. Porque aí, das duas uma: ou enfiaram o Mercosul inteiro na cozinha ou estamos a falar de nativos de Capricórnio.
Para ser justo, o mesmo texto, escarrapachado num menu com o formato do Expresso, diz que “Ni Michi é uma referência às raízes amazónicas, ao respeito à natureza e ao bem viver indígena”, acrescentando que “aqui, fazer o nada é contemplação e edificação”. Vamos por partes. A referência amazónica sempre reduz um pouco o mapa — assim já só temos Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela — mas depois isso não bate certo com o espírito mariachi dos tacos e dos burritos. Quanto à experiência de contemplação, também me deixa cismado. É que a graça da casa está precisamente no escarcéu de festa constante e não vejo o que isso possa ter que ver com a vida pacata dos índios guajajara.
O espaço
Dir-me-ão vocês que já queimei 2500 caracteres e não fiz mais que rezingar com o conceito. Têm razão, é embirrância. Sou avesso a storytelling da treta para ser papagueado em páginas de lifestyle. Mas concedo que, no fim, o mais importante é sempre a comida e a experiência. Entremos então, que se faz tarde.
São 20h40 de uma quarta-feira e a casa está bem composta. Uma generosa comitiva Erasmus preenche metade da sala numa mesa corrida. De resto, alguns casais e mesas de quatro, tudo camone, a tirar pela pinta. O espaço é agradável, cores garridas, motivos tropicais e apontamentos de subúrbio latino, à direita um tucano gigante pintado a spray, à esquerda um rosto de índia ao estilo da Disney, nas colunas The Black Eyed Peas e J Balvin em volume de soundcheck.
No teto pendem verduras e candeeiros de verga, muito ao estilo do Matchamama, restaurante que abriu uns meses antes e umas portas adiante, onde a proposta é uma fusão de cozinha peruana e asiática e onde, lá está, também abunda o leite de tigre. Não é uma ideia estapafúrdia. O Peru é país onde a comunidade japonesa — a que genericamente se dá o nome Nikkei — tem uma influência cultural avantajada, que se estende pelas artes, letras, política e gastronomia, e que produziu resultados tão díspares como o ceviche e Alberto Fujimori. Tanto quanto sei, este Matchamama tem precisamente ligação ao Nikkei, restaurante que em 2017 se instalou no espaço do antigo Vela Latina, na Doca do Bom Sucesso, e que já explorava esse legado da emigração do Pacífico.
A experiência
E com isto dispersei outra vez. Voltemos então à cocina latina e comecemos com um ceviche clássico, para despacharmos já o assunto. Chega como promete, no modo tradicional, finas tiras de cebola roxa e pimento vermelho, milho peruano cozido, sementes de milho gigante fritas, rodelas de batata doce. Mas o conjunto é desligado e deslavado, sem grande apuro nem sabor, a corvina ainda um pouco rija, tudo meio seco e a dar ideia de que alguém se esqueceu de mungir o gato. Dito de outra forma, não está bom.
São agora 21h00 e arranca a música ao vivo. Ficámos, a minha amiga e eu, numa mesa perto dos músicos, e por esta hora temo que o som interfira com os sismógrafos em São Jorge. Mas a banda será das melhores notícias da noite. Chama-se Galax Duo, guitarra/voz e bateria, vai servindo cocktails entre hits dos eighties e outros deste milénio, explorando as relações incestuosas que abundam na pop, e de repente temos Lionel Richie e Rihanna na mesma cama de acordes. Talento, humor, festa instantânea.
No lado de lá da mesa, a minha amiga bate-se com uma frozen margarita maracujá. Pediu a clássica, mas a empregada informou que tinha acabado e que a máquina de granizado (!) não ia trabalhar mais — ouvido isto, fugi para a cerveja. Ela diz que parece um compal e com razão: tem a cremosidade e o sabor de um néctar fresquinho, só que com sal nas bordas e 40 graus de coice.
Seguimos em ritmo de petisco. Primeiro uns tiraditos de atum, outra herança japonesa do Peru, espécie de sashimi com uma leve marinada. O peixe de boas famílias, firme, um dedo altura, sabor de sésamo, soja e pepino, conjunto simpático. Menos interessante a canasta mexicana: os nachos de milho bonzinhos, uma tigelinha com guacamole sem grande pujança de sabor, outra com queijo derretido, parecido àquele que põe as vacas a rir. E uma desilusão os tacos a pastor, em que depositara todas a esperança da minha gulodice. A carne no ponto, mas sem pingo de picante, um pedaço desfalecido de ananás a adocicar a coisa em demasia, e a tortilha húmida e molenga, a ponto de ser impossível pegar no conjunto sem que ele se esbardalhe a caminho da boca.
Por esta hora, está o baile armado. A malta descobre que o “Uptown Funk” de Mark Ronson e Bruno Mars faz um medley perfeito com “Something Got Me Started” dos Simply Red, arredam-se mesas, improvisa-se a pista, explode uma coboiada de copo na mão. Passa das dez de uma quarta-feira fria de março e sinto-me numa viagem de finalistas em Cancun. A algazarra é contagiante, mas isto sem álcool não se aguenta: dos cervezas, por favor!
Entre músicas, o animador vai avisando que aceita gorjetas e eu penso que os sete euritos da marguerita assentavam melhor no chapéu dele. Nem onze horas e dou a noite por arrumada. Diverti-me, não sei se da forma e pelas razões que era suposto. Lá fora, a LX Factory esmorece e só duas outras casas continuam cheias: o tal Matchamama e o Mex Factory, outro poiso animado de tacos e tequilas. A América Latina está em alvoroço e a revolução começa em Alcântara.
Hei-de voltar, mas é mais pela festa.
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O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.