Há duas semanas, em Doha, Lise Klaveness subiu ao palco numa das últimas cimeiras de antecipação do Mundial do Qatar. Ao longo de vários minutos, falou sobre os direitos dos trabalhadores migrantes que construíram os estádios e as restantes infraestruturas, sobre a ausência de independência de auto-determinação das mulheres, sobre as leis que criminalizam as relações homossexuais. Ao longo de vários minutos, Lise Klaveness explicou por que é que o próximo Mundial não deveria acontecer no Qatar. 

“Em 2010, a FIFA atribuiu dois Campeonatos do Mundo [acrescentando o de 2018, na Rússia] de forma inaceitável e com consequências inaceitáveis. Direitos humanos, igualdade, democracia, os interesses principais do futebol, só chegaram ao onze inicial muitos anos depois. A FIFA já começou a falar sobre estes assuntos mas ainda há um longo caminho por percorrer”, disse Klaveness, a primeira mulher a ser eleita presidente da Federação Norueguesa de Futebol em 120 anos de história da organização. José Ernesto Mejía, dirigente da Federação das Honduras, subiu ao palco para criticar o discurso e dizer que os comentários eram “inapropriados”. A verdadeira resposta à norueguesa, porém, apareceu de forma mais institucional.

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Hassan Al Thawadi, o principal responsável pela organização do Campeonato do Mundo, aproveitou o próprio discurso para deixar claro que as palavras de Lise Klaveness tinham sido ouvidas. “Ao longo de anos, de décadas, a nossa região e o nosso país têm sido definidos demasiado frequentemente através de um prisma de conflito, guerra e dos restantes estereótipos e assunções que resultam de falta de proximidade, de falta de entendimento. Algo que tem sublinhado as divisões entre o Ocidente e o Oriente. O legado mais importante deste Mundial será servir como antídoto para estas críticas”, atirou o qatari. No dia seguinte, Al Thawadi abordou pessoalmente a norueguesa para lhe dar conta do seu desagrado.

“Estava muito desiludido porque eu visitei o país e apareci em palco sem me dirigir a ele pessoalmente. Disse-lhe que a minha intenção era criticar a FIFA mas também criticar-nos a nós próprios, era pedir uma ação conjunta neste caso e de forma genérica. Mas ele deixou claro que interpretou tudo como uma crítica e eu limitei-me a agradecer-lhe por ter vindo falar comigo, disse-lhe que podemos marcar uma reunião um dia destes”, revelou Klaveness em entrevista ao jornal Telegraph.

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Lise Klaveness foi jogadora de futebol e representou a Noruega em mais de 50 ocasiões

Afinal, Lise Klaveness foi ao Qatar, exigiu visitar os locais que ainda estão em construção, confirmou as suspeitas que já levava na bagagem e fez um discurso que tinha apenas uma linha de argumento: o futuro do futebol tal qual o conhecemos está realmente em risco. Atualmente, a presidente da Federação norueguesa é uma das principais líderes do movimento interno que pretende questionar a organização do Campeonato do Mundo por parte dos qataris. Mas tem um problema — a Noruega não conseguiu qualificar-se para a fase final da competição, o que significa que as palavras de Klaveness acabam por um peso pragmático pouco significativo. Por isso, enquanto líder da Federação do país que mais contestou o Qatar nos últimos 12 anos, pede ajuda às seleções que vão lá estar.

“Tenho falado com a Alemanha e com outros países, que têm demonstrado apoio. Claro que há sempre reações distintas mas, na maioria dos países, o apoio tem sido fundamental e muito bom. Para nós, é muito importante — enquanto equipa que não se qualificou — perceber que existem outras seleções que vão lá para jogar mas também para serem agentes da mudança”, explicou a norueguesa, eleita no passado mês de março e grande responsável pelo regresso de Ada Hegerberg, tetracampeã europeia e Bola de Ouro, à seleção.

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Um dos objetivos de Lise Klaveness é criar um drop-in center para os trabalhadores migrantes que estão no Qatar, ou seja, um sítio onde esses funcionários possam ir buscar roupa, comida e outros bens de primeira necessidade. “Neste momento, o meu foco está em conseguir abrir esse centro para os trabalhadores migrantes a tempo do Mundial. E garantir que as pessoas LGBTQ+ podem entrar e estar no país de forma segura, algo que atualmente não acontece”, indica, revelando que a maioria dos trabalhadores tem turnos de 12 horas, sete dias por semana, e que encontrou alguns casos de pessoas que estão há três anos a trabalhar ininterruptamente e sem qualquer dia de folga.

“Não pode haver espaço para empregadores que não asseguram a liberdade e a segurança dos trabalhadores. Não pode haver espaço para líderes que não aceitam o futebol feminino. Não pode haver espaço para anfitriões que não conseguem garantir legalmente a segurança e o respeito pelas pessoas LGBTQ+ que querem assistir aos jogos. Temos uma guerra brutal a decorrer na Europa neste momento. Tal como acontece nas guerras em todos os continentes, inocentes estão a ser mortos em insignificantes lutas pelo poder. O anterior anfitrião do Mundial invadiu o país de um dos nossos membros. Inicialmente, a FIFA hesitou. Só a pressão internacional é que forçou uma ação real. Mais do que seguir, a FIFA tem de liderar. E receio que os nossos estádios fiquem vazios, no futuro, se subvalorizarmos a urgência deste momento”, acrescentou a dirigente de 40 anos.

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Antes de ser presidente da Federação da Noruega, Lise Klaveness foi jogadora de futebol e representou o país em 51 ocasiões, tendo feito parte da equipa que chegou à final do Euro 2005. Enquanto ainda jogava, tirou uma licenciatura em Direito, terminou o mestrado e o doutoramento e chegou a assistente de juiz num tribunal de Oslo e conselheira do Banco Nacional da Noruega. Deixou tudo para se candidatar às eleições da Federação, onde já tinha desempenhado as funções de diretora para o futebol feminino, e ganhou. Agora, quer começar a ganhar outras batalhas: e regressa ao Qatar já no próximo mês de maio para continuar a caminhar nessa direção.