A conferência de imprensa estava a chegar ao fim. Um jornalista polaco lança uma pergunta — foram dezenas, ao longo das quase duas horas em que esteve a falar sobre a guerra, sobre a Rússia e sobre o futuro da Ucrânia — e, no fim, Zelensky deixa cair a expressão dura com que se tem mostrado quase sempre perante as câmaras. “Nunca pensei que fosse necessário desejar saúde e uma longa vida às crianças”, começa por dizer. A guerra mudou por completo essa ideia. “Partilho a dor de todos os que perderam os seus filhos”, desabafa o Presidente da Ucrânia, já visivelmente emocionado.
The heaviest words and emotions at the press conference of Vladimir Zelensky pic.twitter.com/0YEHv1fLcF
— Ukraine War Updates – English (@UAWarUpdatesEN) April 23, 2022
“Eles mataram um bebé de três meses. A guerra começou quando este bebé tinha apenas um mês de idade. Conseguem sequer imaginar o que está a acontecer aqui? São uns canalhas. Não tenho outras palavras para usar neste contexto”, disse o Presidente da Ucrânia, enquanto revelava que um ataque com mísseis russos, em Odessa, tinha levado à morte de oito pessoas, entre eles um bebé.
Foi numa estação subterrânea do metro de Kiev — segundo alguns relatos não confirmados, na estação da Praça da Independência — que o Presidente ucraniano deu a sua primeira conferência de imprensa desde que a guerra começou. Durante quase duas horas, Volodymyr Zelensky respondeu às perguntas de uma multidão de jornalistas, de vários pontos do mundo, e, mais uma vez, apresentou-se como um líder sem medo do gigante russo.
Um bom líder não tem direito de ter medo quando se trata de uma questão de soberania e independência de um país”, afirmou, quando questionado sobre um possível encontro com o Presidente russo, algo que há muito tem vindo a pedir.
“Eu não tenho medo do encontro com o Presidente [Putin]. Não tenho direito de ter medo porque o nosso povo demonstrou que não tem medo de nada, não tem medo das técnicas da Rússia. As nossas forças armadas, bem como os nossos militares, não têm medo”, disse, sentado numa cadeira colocada num estrado e ladeado por duas enormes bandeiras ucranianas — toda a plataforma foi, aliás, ornamentada com bandeiras da Ucrânia, formando um longo corredor preenchido com as cores azul e amarelo por detrás do Presidente ucraniano.
Zelensky continuou a projetar confiança ao dizer que a Ucrânia pode muito rapidamente tomar controlo de todas as zonas ocupadas pelas forças russas, desde que tenha acesso a armamento pesado — algo que, recentemente, vários países ocidentais se comprometeram a fornecer.
“Quando tivermos as armas, conseguiremos libertar o território que está agora ocupado. Mesmo a região em Kharkiv e o leste a Ucrânia. Com armamento pesado conseguimos libertar as áreas nessa mesma noite ou no dia seguinte. Quando não temos este apoio de armas, não conseguimos libertar tão rapidamente os territórios”, garantiu.
Dizendo-se apologista de uma solução diplomática para o conflito com a Rússia, Zelensky afirmou, no entanto, que a sua disponibilidade para negociações de paz tem limites, e um deles é a realização de referendos sobre a autonomia de partes do território da Ucrânia. Referiu-se em concreto a Kherson, onde as autoridades ucranianas dizem que a Rússia tem intenções de organizar um referendo semelhante ao da Crimeia em 2014, no qual um número esmagador de moradores terá votado pela adesão à federação russa — uma consulta popular que não obteve o reconhecimento (ou validação) internacional.
“Se este pseudo-referendo declara uma República Popular de Kherson, a Ucrânia vai sair de qualquer processo de negociação”, avisou, alertando quem está nesta zona do país para que não apoie as forças russas. “As pessoas devem saber sobre a situação real e não podem ajudar os ocupadores”, frisou.
Blinken no domingo, Guterres na quinta-feira
Nesta conferência de imprensa, Zelensky colocou ênfase na importância do apoio dos aliados e, em particular, nas visitas de líderes internacionais a Kiev. Na próxima quinta-feira, vai receber o secretário-geral da ONU e já tem o programa definido: “Penso que quando o secretário-geral chegar, vamos mostrar as nossas cidades, onde os ucranianos foram mortos. Penso que é muito importante perceber o que se passa aqui.”
“Esperamos o apoio a 100% [de António Guterres], uma vez que temos 100% de razão”, comentou. Espera apoio, mas também deixa recados: para Zelensky, a agenda de António Guterres, nas duas deslocações que fará na próxima semana à região, têm um problema de fundo: a agenda prevê que o secretário-geral das Nações Unidas vá, primeiro, a Moscovo e só depois a Kiev mas, para o líder ucraniano, a ordem devia ser exatamente a contrária.
Não tem lógica”, atirou Zelensky.
“É errado ir primeiro à Rússia e vir depois à Ucrânia. Não há justiça nem lógica nessa ordem” porque, considera, o encontro com Putin só deveria acontecer depois de Guterres testemunhar pessoalmente a marca que a invasão russa está a deixar no território e na população ucranianos.
Mas as visitas de alto nível não terminam por aí. Começam, aliás, com outro protagonista de peso. Já este domingo, será a vez de o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, visitar Kiev. A deslocação de Blinken à capital ucraniana, anunciada durante a conferência de imprensa, representa a visita da mais alta figura do governo dos Estados Unidos em território ucraniano desde o início do conflito, há quase dois meses.
A Casa Branca tinha afastado, pelo menos para já, a possibilidade de Joe Biden deslocar-se a Kiev. “Não há planos para o Presidente Biden viajar até à Ucrânia”, esclareceu a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, numa conferência de imprensa no início da semana, indicando, no entanto, que um alto-responsável do governo norte-americano estaria em breve em Kiev.
Pode a Rússia usar armas nucleares? “Pode. Mas não quero acreditar nisso”
O chefe de Estado ucraniano listou as várias ameaças que as forças russas representam neste momento, e disse mesmo acreditar que o Kremlin pode vir a recorrer a armas nucleares, ainda que isso refletisse que os líderes russos “perderem total ligação à realidade”.
“Vou responder à sua pergunta sobre se pode acontecer: pode. Mas não quero acreditar nisso”, afirmou, em resposta a um jornalista. Zelensky disse ser totalmente contra o uso de armamento nuclear, mas admitiu, ao mesmo tempo, que seria benéfico que a Ucrânia as tivesse: “Se tivéssemos armas nucleares acho que os riscos de uma guerra com a Rússia seriam minimizados, é aquilo em que acredito”.
Questionado sobre o número de ucranianos levados à força para a Rússia — algo para que as autoridades de Kiev têm vindo a alertar —, o Presidente ucraniano disse ter conhecimento de pelo menos 500 mil pessoas nessa situação, que ou foram levadas para a Rússia, ou para os territórios de Donetsk e Lugansk, zonas ocupadas no leste da Ucrânia.
O número que temos é que meio milhão de pessoas foram deportadas de diferentes partes da Ucrânia para a Federação Russa ou para zonas ocupadas do leste da Ucrânia”, afirmou. Destas, cerca de cinco mil são crianças, mas Zelensky disse não estar certo deste número.
Sobre Mariupol, cidade controlada pelos russos com exceção do enorme complexo industrial de Azovstal, o líder ucraniano alertou que as forças inimigas vão avançar com novo ataque. “As forças russas estão a atingir a cidade de Mariupol pelo mar, pelo ar, pela terra. Há uma hora recebi informação de militares que estão lá de que a Rússia está a planear mais um ataque”, avançou.
Zelensky disse que, apesar de a Rússia ter dito que “a bola está do lado da Ucrânia” em relação a Mariupol, “isso não corresponde à verdade”, já que Kiev tem proposto troca de prisioneiros e corredores humanitários para poder tirar civis do complexo de Azovstal, propostas essas que não têm sido aceites. Estima-se que cerca de mil civis estejam refugiados na fábrica.
Pelo que acredita serem crimes de guerra, Zelensky disse esperar que o Kremlin seja julgado e condenado, a nível internacional. “Se é Haia, ou outro sítio na Ucrânia, sinceramente, não é o nome que me importa. O que importa é quantas pessoas vão ser presas e por quantos anos”, afirmou. Zelensky mostrou-se confiante num resultado positivo no Tribunal Penal Internacional, dizendo que tem contado com o apoio de vários líderes europeus. “Toda a gente percebe quem é culpado”, comentou.
Zelensky agradece aos ucranianos — e aos russos também
Já na fase final da conferência de imprensa, o Presidente ucraniano afastou-se das questões mais concretas e dedicou-se ao lado mais humano da guerra.
E os agradecimentos de Zelensky não foram apenas dirigidos aos ucranianos ou aos países aliados, mas também aos russos — não aos que lutam no exército, mas também aos que protestam contra a guerra nas ruas do seu país.
Na Rússia não há muitas pessoas a sair para as ruas, para as praças, é muito difícil [para elas]. Imaginem só, um poder nuclear que tem medo de pessoas que sozinhas saem para a rua. Agradecemos a estas pessoas, e desejo-lhes boa saúde”, comentou.
Mas foi a falar ao seu próprio povo que Zelensky se emocionou, e causou emoção. Numa referência ao conflito em curso nas cidades da Ucrânia, disse que, antes de ter tido início a guerra no seu país, nunca pensou que “fosse necessário desejar longa vida às crianças”. “Mas, por causa desta guerra, eu desejo que todos os nossos [concidadãos] protejam os seus filhos o mais possível”, afirmou.
Foi neste momento que se viu obrigado a uma breve pausa, para depois concluir, já de olhos humedecidos: “Mais importante: eu partilho da dor de todos os que perderam os seus filhos.” A mudança de plano da câmara revela que não só Zelensky se emocionou: na audiência, uma jornalista limpava as lágrimas.