Pouco mais de duas semanas depois de a comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja Católica em Portugal ter apresentado as suas duras conclusões preliminares, os bispos portugueses reuniram-se em Fátima numa assembleia plenária de quatro dias para estudar, entre outros assuntos, as possibilidades e os moldes em que a Igreja permitirá à comissão aceder aos seus arquivos históricos.

No final, numa conferência de imprensa que durou mais de uma hora, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, foi cauteloso nas promessas que fez — embora tenha assegurado a disponibilidade da Igreja para permitir o acesso aos arquivos — e deixou escapar algumas críticas às acusações lançadas há duas semanas pela comissão independente.

“Fazer afirmações de indícios de encobrimento neste momento parece-me descabido”

O bispo de Leiria-Fátima, que desde 2020 lidera a CEP, órgão máximo da Igreja Católica em Portugal, foi insistentemente questionado pelos jornalistas presentes em Fátima acerca das conclusões recentes da comissão independente, concretamente com o anúncio feito pelo coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, de que existem indícios de encobrimento de casos de abuso sexual de menores por parte de bispos portugueses que ainda estão no ativo.

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Fazer afirmações de indícios de encobrimento neste momento parece-me descabido“, afirmou D. José Ornelas, acrescentando, sem concretizar: “Há assuntos que estão a ser tratados nas próprias instituições. É preciso dizer o que é que significa encobrimento. Só o conhecimento dos factos é que pode determinar.”

Numa conferência de imprensa em Lisboa há duas semanas, Pedro Strecht tinha explicado que, além das denúncias de abusos em si, a comissão independente está também a olhar para o modo como a Igreja Católica lidou com eventuais denúncias que lhe tenham chegado nas últimas décadas.

Abusos na Igreja. 290 testemunhos, 16 casos enviados ao MP e indícios de encobrimento. As primeiras conclusões da comissão independente

Há situações em que nos apercebemos da tal situação de encobrimento e ocultação”, disse Pedro Strecht, sublinhando que existem “mecanismos de defesa, negação, projeção, deslocamento” nas instituições. “Existia muito a prática da deslocação da pessoa abusadora de local para local, como se anteriormente o local fosse visto como o determinante, e não a pessoa em si”, clarificou o coordenador da comissão. “Temos referência a bispos anteriores e bispos no ativo.

A comissão explicou ainda que já tinha recolhido 290 testemunhos de abusos de menores na Igreja entre a década de 1950 e os dias de hoje, envolvendo denunciantes entre os 13 e os 88 anos de idade, que sofreram abusos com idades entre os 2 e o 17 anos. Na conferência de imprensa, os membros da comissão revelaram que já tinham enviado para o Ministério Público 16 denúncias, por se tratarem de casos em que o prazo de prescrição ainda não tinha sido ultrapassado.

Além disso, a comissão revelou também que pretende reunir-se pessoalmente com cada um dos 21 bispos portugueses para avaliar a situação do combate aos abusos nas várias dioceses. Contudo, até à data da conferência de imprensa, e após duas rondas de contactos por e-mail com os 21 bispos portugueses, cinco bispos ainda não tinham dado sinal de vida à comissão, segundo revelou a socióloga Ana Nunes de Almeida, uma das personalidades que integram o grupo de trabalho.

No próprio dia, através do seu porta-voz, D. José Ornelas garantiu ao Observador que todos os bispos portugueses iriam colaborar com a comissão e que o que estava combinado entre a CEP e a comissão independente era que os contactos decorressem depois da reunião plenária desta semana. Mais tarde, o Expresso noticiou que que D. José Ornelas era justamente um dos cinco bispos que ainda não tinham respondido à comissão independente, embora o bispo de Leiria-Fátima explicasse que ainda não o tinha feito por vários motivos, incluindo ter chegado à diocese há pouco tempo e ainda não conhecer bem a realidade, mas também por ter ficado na semana passada retido em Roma por contágio por Covid-19 e precisar de ficar sete dias em isolamento, e ainda o facto de a Igreja se encontrar atualmente a viver a Semana Santa, muito ocupada no que respeita a celebrações religiosas.

Nos dois dias seguintes, em reação às notícias que vieram a público na sequência da conferência de imprensa da comissão, os bispos que estavam em silêncio contactaram a comissão independente para agendar as reuniões.

Agora, questionado diretamente sobre esta sucessão de notícias sobre a relação entre os bispos portugueses e a comissão independente, D. José Ornelas diz que é “descabido” dizer que houve bispos a recusar colaborar.

Bispos que estavam em silêncio contactaram comissão independente após divulgação de notícias, revela Pedro Strecht

Eu sou um dos tais bispos, que é descabido dizer que se recusaram. Ninguém se recusou. O calendário dizia que toda esta ligação com os bispos seria feita depois desta assembleia“, disse D. José Ornelas, explicando que nas últimas semanas teve dificuldades em organizar o seu calendário, devido às mudanças de diocese. Ainda assim, o líder da CEP garantiu estar “constantemente em contacto da comissão” e assegurou que tudo está agendado. “Não há drama nenhum”, afirmou. “Nada está fora do prazo.”

O bispo de Leiria-Fátima salientou que a CEP tem contactos “muito cordiais” com a comissão para acompanhar o andamento do trabalho, mas sublinhou que os bispos não têm acesso à informação mais sensível que está a ser tratada pela comissão. “A comissão está a fazer o seu trabalho autonomamente segundo o que foi combinado e está a funcionar muito bem. Ter dado autonomia à comissão significa que não somos nós que estamos dia a dia a gerir esses resultados.”

Apesar de sublinhar reiteradamente as relações cordiais entre a CEP e a comissão independente, D. José Ornelas não escondeu algum desconforto com as revelações feitas pelos académicos quanto à existência de indícios de encobrimento por parte de bispos no ativo — e disse que é necessário esperar por dados mais concretos para fazer um julgamento.

A noção de encobrimento do ponto de vista jurídico é diferente“, afirmou, sublinhando que é diferente ocultar um caso da opinião pública ou das autoridades. Mesmo questionado sobre os exemplos apontados por Pedro Strecht — nomeadamente, a transferência de sacerdotes entre paróquias, já identificada pela comissão —, D. José Ornelas disse não ter informações concretas, mostrando-se preocupado com a possibilidade de não terem sido seguidas todas as normas internas da Igreja sobre o assunto, mas lembrando: “Muitas vezes, nestes casos das vítimas de abuso de menores, são as pessoas que não querem que o nome venha a público.”

Segredo de confissão “não prevê nem nunca vai prever” exceções, nem mesmo para casos de abuso

D. José Ornelas foi também questionado sobre os 16 casos enviados ao Ministério Público por se encontrarem ainda dentro dos prazos que permitem a investigação judicial, mas optou por não comentar o assunto nem dizer se vai ser tomada alguma medida preventiva relativamente a eventuais suspeitos que ainda exerçam o sacerdócio em paróquias portuguesas.

Uma vez que há uma denuncia ao MP torna-se segredo de justiça, não tenho nada a elaborar sobre isso“, disse D. José Ornelas, acrescentando que um dos aspetos fulcrais para o “bom funcionamento da justiça” é o facto de a justiça não funcionar “na praça pública“.

“As coisas são para ser tomadas seriamente, com dados que sejam disponibilizados. Há certas coisas que só se vão perceber no fim”, disse D. José Ornelas. Quaisquer medidas preventivas relativamente aos suspeitos — que são, aliás, previstas nas normas do Vaticano para o tratamento de casos de abusos de menores — têm de ser avaliadas “dentro do processo de investigação“.

Apesar das garantias de colaboração com a comissão independente, D. José Ornelas deixou também uma certeza: o segredo de confissão, figura jurídica que protege incondicionalmente tudo o que é dito no âmbito do sacramento da confissão, não vai nunca ser colocado em causa no debate sobre como lidar com os casos de abuso. O líder da CEP foi questionado sobre se a Igreja Católica estaria preparada para abrir em Portugal um debate semelhante ao que já foi tido noutros países quando os casos de abuso chegaram à justiça civil (como aconteceu na Austrália, com a aprovação de leis que acabaram com a proteção específica do segredo de confissão em casos de abuso).

Para o líder dos bispos portugueses, o assunto não é sequer discutível.

Nunca esteve nem nunca estará em questão“, disse D. José Ornelas, equiparando o segredo de confissão com o sigilo profissional de profissões como os médicos ou os psiquiatras. “Seria uma injustiça muito grande porque abriria toda a confiança que é necessário que exista dentro da confissão, como em muitas outras profissões, como médico ou psiquiatra.”

Confrontado com o facto de a lei prever exceções para o sigilo profissional nas várias profissões enumeradas (nomeadamente, quando exigido por um tribunal), mas não para os sacerdotes, D. José Ornelas garantiu que o segredo de confissão “não prevê nem nunca vai prever” exceções.

“Não vou julgar quem tomou decisões há 50 anos”

Durante toda a conferência de imprensa, D. José Ornelas insistiu na necessidade de usar de muita cautela na análise de casos de abuso antigos, bem como no julgamento de decisões tomadas por bispos há várias décadas, porque ao longo dos últimos decénios o mundo testemunhou uma profunda mudança de mentalidades em relação ao abuso de menores.

“Até 1995, estas questões eram vistas como atentados aos bons costumes”, disse o bispo, lembrando palavras que o juiz jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, que também integra a comissão independente, tem repetido em várias intervenções públicas sobre o assunto. “Mesmo a consciência publica de tudo isto e a forma de tratar eram diferentes.

À medida que se deu uma evolução de mentalidades e consciências na sociedade civil, também a Igreja Católica evoluiu, disse D. José Ornelas, sublinhando que hoje a Igreja coloca o foco do problema nas vítimas, e não nos abusadores — dando prioridade à proteção das vítimas e não à salvaguarda da reputação dos abusadores e da instituição. “Neste período de 50 anos as coisas evoluíram.

No comunicado lido no início da conferência de imprensa pelo porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, os bispos portugueses reafirmavam “um sentido pedido de perdão, em nome da Igreja Católica, e o empenho em ajudar a curar as feridas“. Questionado sobre se a Igreja também deveria pedir perdão à sociedade pelo modo como desvalorizou o problema, D. José Ornelas insistiu que houve uma “evolução” do modo de pensar, tanto na Igreja como na sociedade civil.

“A Igreja tem obrigação de uma consciência crítica em relação a todas as coisas”, disse o bispo, acrescentando: “Não vou julgar quem tomou decisões há 50 anos.”

Mesmo quando confrontado com a existência de indícios de desvalorização do assunto nos últimos cinco anos, numa altura em que o tema dos abusos já marcava a realidade da Igreja Católica em todo o mundo, o bispo reiterou apenas a “evolução dentro da Igreja” quanto à necessidade de proteger as vítimas. D. José Ornelas recusou fazer qualquer comentário sobre o facto de até recentemente haver bispos a classificar o drama dos abusos como apenas alguns casos pontuais, sobre as declarações do bispo do Porto em 2019 recusando criar uma comissão de proteção de menores porque também “ninguém cria, por exemplo, uma comissão para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”, ou ainda sobre o bispo de Lamego, que chegou a caracterizar o drama dos abusos como um assunto que não existe.

Questionado sobre estas declarações, que não têm 50 anos, mas menos de cino, D. José Ornelas disse apenas estar concentrado nas suas responsabilidades “com o presente e o futuro” — e garantiu que existe “unanimidade” entre os bispos portugueses quanto à investigação do passado da Igreja portuguesa.

Comissão independente vai ter acesso a arquivos da Igreja

Na reunião plenária desta semana, os bispos portugueses decidiram também que vão permitir à comissão independente que aceda aos arquivos eclesiásticos, desde que sejam respeitadas as normas e leis relacionadas com a proteção de dados.

“O coordenador designado pela Conferência Episcopal, Dr. Pedro Strecht, constituiu autonomamente esta Comissão e uma equipa de Historiadores e Arquivistas, liderada pelo Prof. Dr. Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, para estudar este drama na vida da Igreja, com o objetivo de chegar, de forma inequívoca e eficaz, ao esclarecimento e à verdade dos factos através do estudo dos Arquivos Históricos existentes em cada Diocese, num trabalho de colaboração e confiança mútua com cada Bispo Diocesano”, disse o padre Manuel Barbosa no início da conferência de imprensa.

Abusos de menores. Bispos católicos prometem à comissão independente acesso aos arquivos da Igreja

“Quanto ao estudo dos arquivos históricos, a Conferência Episcopal Portuguesa e a Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal reiteram todo o interesse em colaborar com a Comissão Independente e a Equipa por esta designada, respeitando a Lei Civil, a Lei Canónica e o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados”, disse ainda.

Para o bispo D. José Ornelas, o objetivo é que “não restem dúvidas sobre qualquer conteúdo que nós tenhamos a respeito de abusos sexuais de menores”. Contudo, este trabalho exige uma confiança “de parte a parte” entre os bispos e o grupo de trabalho liderado por Francisco Azevedo Mendes. “Temos muita confiança [no grupo de trabalho], é gente muito profissional e muito capaz”, disse ainda.

No entanto, D. José Ornelas avisa que é possível que a maioria dos casos de abuso não tenham deixado qualquer rasto nos arquivos. “Estas denúncias que chegam agora, é possível que muitas delas não estejam nos arquivos. Sabemos que em muitos casos só decénios depois é que as pessoas se decidem a falar. Esta é uma ocasião, fomos nós que a lançámos, queremos medir e estudar a dimensão deste problema.”