O segundo dia de debate orçamental arrancou, como sempre, às dez da manhã para começar com votações e seguiu para o debate das propostas de alteração ao OE agendadas para este dia, mas eram 11h30 e o tema quente continuava a ser o do dia anterior: a alteração profunda que o PS fez a uma proposta já debatida e que a oposição reclamava ter entrado contra as regras do jogo. O tema foi aproveitado por todas as bancadas, não pelo conteúdo mas pela forma, que a oposição garante ser já um tique autoritário da maioria socialista. Resultado: o que estava por acontecer de manhã, prolongou-se pela tarde dentro.

O que estava em causa? As propostas de alteração ao Orçamento tinham de entrar até 13 de maio. Depois disso, durante a especialidade, os partidos podem fazer propostas de substituição, com alterações mais simples do que aquela que surgiu na proposta do PS sobre o Fundo Social Municipal e o aumento de margem de endividamento, onde surge todo um artigo novo. A oposição entendeu isso como uma alteração e não uma substituição de proposta e que, ainda para mais, não tinha sido debatida nos seus novos moldes.

“É um precedente perigoso que o PS quer abrir porque hoje tem maioria absoluta. Se não tivesse, nunca quereria abrir. E é por ter maioria absoluta que não o podemos permitir”, disse a deputada do BE Mariana Mortágua. Paula Santos, do PCP, acrescentou que estão não é “só uma questão de praxe, há uma alteração da proposta. Não podemos permitir que a maioria absoluta do PS não faça cumprir as regras. Com a maioria absoluta e estas atitudes abusivas, não há regras que valham”.

Filipe Melo, do Chega, chamou-lhe “um pontapé no regimento” e, no PSD, Paulo Mota Pinto insistia que a alteração traz “todo um artigo novo”, subverte os prazos normais para apresentar mudanças e pretende que se vote uma proposta que não foi discutida pelos deputados.

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Enquanto isto, o PS garantia estar a cumprir o regimento da Assembleia da República e o líder parlamentar Eurico Brilhante Dias dizia-se até “surpreendido” por a comissão de Orçamento e Finanças recusar aceitar a proposta de substituição.

O debate não ficou por aqui e foi em crescendo até o presidente da Assembleia da República ser envolvido. Augusto Santos Silva submeteu a votação recursos e decisões, admitindo, no final de tudo isso, a dita proposta da Mesa ao som de um “oohhhhh” irónico dos socialistas. Pedro Filipe Soares, do BE, pediu a palavra para afirmar que “a partir do momento em que a Mesa [da Assembleia da República] toma parte neste processo de arrogância do PS está a dizer que lhe falta a independência que garantiu que teria, no discurso de tomada de posse da Assembleia da República.”

E antes dele, já Paulo Mota Pinto tinha dito a Santos Silva não ficar tranquilo com a garantia de “aplicação do mesmo critério no futuro, já que é antes falta de critério em benefício do rolo compressor da maioria absoluta. Não esperávamos isso da Assembleia da República”, atirou o líder parlamentar do PSD.

A acusação rodou toda a oposição e, por vezes, até com as mesmas palavras. André Ventura, por exemplo, voltou à imagem do “rolo compressor da maioria”, usada pelo PSD, para descrever o que tinha acontecido.

No PS, Brilhante Dias defendia-se como podia, recorrendo à vitimização: “Esta maioria não vai impedir nenhum grupo parlamentar de recorrer para o plenário das decisões de uma comissão” — isto porque o PS tinha pedido recurso para plenário da recusa da proposta pela comissão parlamentar. O “chamado rolo compressor é a vontade democrática dos portugueses em dizer que este grupo parlamentar tem direito de recorrer para o plenário das decisões das comissões”, respondeu ainda o socialista às acusações que chegavam nas outras bancadas.

No final de todas as contas, a proposta teve apenas o voto contra de três bancadas, mas o PS ficou isolado no voto a favor, numa forma de protesto de alguns partidos, como o PSD, que não se opunham ao conteúdo (que dará mais margem de endividamento às autarquias), mas sim à forma como os socialistas colocaram o tema.

A longa discussão sobre um assunto que até já tinha sido debatido acabou por ter um efeito colateral: o atraso na agenda de todo o dia de processo orçamental. Santos Silva acabou por decidir para os trabalhos e mandar os deputados almoçar pelas 13h20, o que significa que todo o debate ficou para depois das 14h30 — já perto da hora a que a segunda parte do dia, a das votações, devia começar.

O hospital prometido e uma folha de dicionário

A segunda pedra na engrenagem do debate surgiu a meio da tarde, enquanto os deputados debatiam propostas sobre Saúde. Desde logo, a oposição atacou o PS com dois temas clássicos: a falta de médicos de família — a que o Governo respondeu, lembrando que também o último Executivo do PSD prometia um médico de família para cada português, comprovando que nem um nem outro cumpriram, até ver, a promessa — e as garantias sobre a construção de novos hospitais um pouco por todo o país, de Sintra ao Algarve.

Sobre o prometido e adiado hospital do Algarve, ficou uma garantia do secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales: até ao fim do terceiro trimestre deste ano estarão reunidas as condições para finalmente avançar com a obra — prometida desde 2006.

Mas foi também com Lacerda Sales que o ambiente voltou a aquecer. Com o deputado do Chega Pedro Frazão a lançar fortes ataques ao Governo e ao “doutor Sales”, as bancadas foram ficando mais agitadas até chegarem à fase das patadas, quando Frazão acusou os “socialistas caviar” de serem “hipócritas”.

Algumas defesas da honra depois, aconteceria então o momento mais inesperado do dia: os serviços do Parlamento começavam, a pedido do PS, a distribuir não as habituais informações e gráficos para contextualizar as intervenções, mas antes cópias de uma impressão do dicionário online Priberam. A definição escolhida? A da palavra “hipócrita”. Espantado, o líder parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto, pegou na folha e acusou o PS de andar a “brincar com os portugueses”.

E o líder da bancada socialista, Eurico Brilhante Dias, replicou: o PS cumpre as suas promessas — e tinha prometido ensinar ao Chega o significado da palavra hipócrita. Dito e feito, perante a perplexidade dos sociais-democratas.

A folha distribuída no plenário

Licença menstrual aqueceu debate. “Pacóvio é ser machista”

O outro tema que valeu discussão no Parlamento foi outro dos assuntos que já vinham de segunda-feira: a proposta de licença menstrual de três dias, avançada pelo PAN. A esquerda até concordava, mas queria que a licença fosse paga; Inês Sousa Real mostrou-se disposta a deixar os detalhes para a regulamentação; mas o maior embate voltou a acontecer com o Chega, mais precisamente com a única deputada mulher da bancada, Rita Matias.

Foi Rita Matias quem ficou responsável pelo ataque ao PAN, acusando a deputada de apresentar uma prova de “feminismo bacoco” e até de criar um novo fator de discriminação para as mulheres em contexto laboral.

Sousa Real irritou-se e disparou vários tiros de rajada contra Matias, dizendo que “pacóvio é ser-se machista”, acusando o Chega de “desprezar os direitos das mulheres” e rematando assim: “Antes ter uma [deputada, já que é a deputada única do PAN] e ter valores que estão consentâneos com os valores do século XXI do que manter os valores de Deus, pátria e família dos tempos da outra senhora”. A tirada valeu-lhe aplausos do PS e do Bloco de Esquerda — mas a proposta acabou chumbada na mesma.