Nos primeiros instantes de “SuperNature”, o seu segundo especial de stand up para a Netflix, Ricky Gervais apresenta-se a palco como “um homem que não precisa de fazer isto”. Trata-se um daqueles casos em que se usa uma piada para suavizar uma verdade. Gervais já foi um dos mais originais e mais bem preparados da sua classe, mas uma certa dose de soberba tem-no tornado menos fresco e astuto em cima das tábuas. “SuperNature” não volta consistentemente à qualidade de clássicos do género como “Politics” ou “Science” (em salas cheias, mas muito antes do contrato milionário com o gigante do streaming), porém consegue o mérito de ser melhor que o seu antecessor, “Humanity”, esse sim um exercício preguiçoso por parte de quem sente que tem tantos pergaminhos que pode fazer pouco mais do que aparecer.
Uma coisa que a vida e que a minha condição profissional me ensinaram é que poucas classes profissionais se levam tão a sério como os comediantes. São, geralmente, menos premiáveis à crítica do que um adolescente rebelde que acha por defeito que o mundo está contra ele. Por isso, não sendo surpreendente, é uma pena que Gervais seja mais um a embarcar na tendência para explicar ao seu público burro o que é uma piada e porque é que o mundo deixou de as aceitar. Apenas para que fique claro: eu concordo com uns bons 80 por cento dos argumentos explicados nos primeiros 12 minutos de “SuperNature”, mas parece-me autofágico que tantos comediantes usem parte dos seus sets para doutrinarem o seu público sobre um mesmo tema em loop, sempre tentando justificar o seu talento e a sua pertinência em vez de simplesmente os demonstrarem através do seu trabalho e das suas piadas.
O arranque do espectáculo (na verdade, um sexto do tempo total) é gasto a explicar aquilo que o co-autor de “The Office” chama de “as regras da comédia”. Se tem graça ao fazê-lo? Às vezes. Se opera como o agente provocador que conhecemos? Sim, mesmo quando soa um pouco forçado (a insistência no tema da comunidade trans parece servir só para cavalgar a polémica do especial de Dave Chappelle, seu colega do lado na Netflix; e terá resultado, já que muitas manchetes sobre “SuperNature” pegam exatamente por aí). Se era necessário? Esta que vos escreve tem sérias dúvidas que sim.
Quando finalmente desemboca desta espécie de lavar de roupa suja corporativo, “SuperNature” pega finalmente no tema que lhe dá título e mote: o lado espiritual, religioso, a reflexão sobre a morte. É muito público o ateísmo convicto de Gervais (recomenda-se, por exemplo, o debate entre este e o católico praticante Steven Colbert), o que lhe permite vários ângulos interessantes e mordazes. É aqui que podemos, finalmente, reconhecer a espaços o génio de “Politics” e “Science”, com piadas de igual dose de inteligência e irreverência.
Como acontece em todos os seus especiais temáticos, Gervais usa o motivo base para distribuir jogo e abordar diferentes assuntos. De gatos mimados a questões sobre matar ou não Hitler em bebé, passando pela SIDA ou pela nudez em balneários ou até pela pedofilia (um dos melhores momentos é uma reflexão sobre se “serão os pedófilos homofóbicos”). O problema aqui é que se nota que o especial foi pouco rodado e limado antes de ser gravado para a Netflix (por falta de tempo ou por pura opção), pelo que surge como um pouco mal acabado, por vezes com as costuras de fora. Infelizmente, e apesar de alguns ótimos momentos, perde gás a determinado ponto e acaba com piadas mais fracas em vez de manter o ritmo ou ir em crescendo. Os instantes finais de um especial de stand up são sempre cruciais para um final que se quer apoteótico, e aqui Gervais opta por terminar com uma história real (faz questão de o realçar) que fica melhor a animar um jantar de amigos do que a terminar um espectáculo com distribuição mundial.
O que fica, então, de “SuperNature”? Fica um espectáculo desigual, que mistura um Gervais encostado à reputação com um Gervais ainda capaz de verdadeiros rasgos. Um Gervais que, quando pára de nos explicar tabus e simplesmente ousa fazer alguma coisa com eles, ainda se parece divertir. Não está lá sempre, mas é sempre um gosto quando resolve aparecer aqui e ali.