“Não somos imortais, somos estranhas criaturas,

separadas entre estereótipos e estruturas”

As palavras são de Sam the Kid e remontam a 2001, ao tema “Lamentos”. Mas, mais de 20 anos depois, podem ser facilmente recuperadas. Com destaque para uma: estereótipos. Depois de se saber que o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) associa a cultura do hip-hop ao aumento da criminalidade de grupo em Portugal, o rapper de Chelas volta a falar em “estigma” e “preconceito”. “O hip-hop nunca será a razão que leva as pessoas a cometer atos violentos. É um puro acaso, é uma coisa secundária que pode fazer parte de uma pessoa que comete crimes. Mas não acho que o hip-hop seja o chamariz para a violência”, sentencia Sam the Kid.

Em declarações ao Observador, o artista de 42 anos afirma que não faz sentido associar um género musical à prática de crime. Para Sam the Kid, é um caso de “generalização”: “Se encontrarmos casos específicos, são casos específicos. Se três realizadores cometerem um crime, vamos dizer que toda a cultura cinematográfica está assim? Acho que é um pouco injusto”, defende.

O Relatório Anual de Segurança Interna afirma que a criminalidade grupal foi uma das que mais cresceu entre 2020 e 2021, com um aumento de 7,7%, sendo que as autoridades associam este fenómeno ao hip-hop e ao drill, um subgénero. O RASI destaca ainda que este tipo de criminalidade está sobretudo associada a grupos de jovens, entre os 15 e os 25 anos de idade, com “vasto historial criminoso centrado essencialmente na prática de roubo, furto, ofensa à integridade física e ameaça, durante o período noturno”.

Segurança: autoridades associam cultura do hip-hop a crimes de gangues que cresceram 7,7%

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Sam the Kid não nega que haja crime entre pessoas que se inserem nesta cultura. Mas alerta para uma generalização excessiva: “Pode haver casos mais específicos que podem envolver pessoas que fazem música. Agora, julgar a música em si é um pouco ridículo. Há pessoas que cometem crimes e fazem música, da mesma forma que podem ser pasteleiros ou o que for”, reforça em declarações ao Observador.

O relatório divulgado pelo Governo fala numa “preponderância da subcultura hip-hop como uma das principais formas de expressão de grande parte destes jovens, nomeadamente, através da gravação e edição de videoclips, com roupas e cartazes alusivos ao respetivo gangue ou bairro”. As autoridades afirmam que, além da pertença a determinado bairro, gangue, ou até escola, também a identificação com um grupo de hip-hop ou drill pode motivar relações de conflitualidade entre grupos.

Ouça aqui na íntegra as declarações de Sam the Kid:

Sam the Kid. “Hip-hop não é chamariz para a violência”

O rapper discorda. “Sempre houve grupos rivais em bairros, que também ouviam outros géneros musicais. E a coisa nunca foi por aí. Se calhar porque não eram artistas. Se calhar agora funciona assim porque somos artistas. É mais fácil gravar música em casa, pôr um vídeo no YouTube. Mas se a parte artística não existisse, a rivalidade existia à mesma e a violência também. A música traz um papel secundário”, afirma.

Bruno Martins concorda. Jornalista e autor da série documental “Implantação da Rapública”, também critica as conclusões do Relatório Anual de Segurança Interna: “É perverso e perigoso estar a fazer este tipo de associações a um género musical que, hoje em dia, curiosamente, é provavelmente o género mais popular, que não é só ouvido pelas pessoas dos bairros: é ouvido das vivendas de Cascais até aos bairros do Cerco no Porto”.

Em declarações ao Observador, Bruno Martins garante que quem ouve hip-hop não tem tendência para atividades criminosas ou violentas. E atira: “É mesmo ao contrário”.

É óbvio que a cultura do hip-hop tem origens em bairros de poucas oportunidades. Mas também é importante dizer que o rap e o hip-hop salvaram muita gente de vidas criminosas, de vidas um pouco mais difíceis. E isso é uma coisa que eu tenho vindo a testemunhar com este trabalho da ‘Implementação da Rapública'”, destaca Bruno Martins.

“Porquê, então, apontar o dedo a uma cultura que é tão vasta?”, questiona igualmente Sam the Kid. O músico arrisca uma explicação: “Se analisarmos a raiz do drill de Chicago, uma cidade que tem essa fama de violência e gangues… talvez exista uma tentativa de transpor isso para cá”. Contudo, ressalva: “Mas acho que quem tenta catalogar isso são este tipo de relatórios”.

Sam The Kid e Mundo Segundo: “Quem diz que trap não é hip hop está a ser Rui Veloso”

A opinião de Bruno Martins vai no mesmo sentido. E recorda um episódio em específico para exemplificar: “Há uma conversa que aparece no ‘Implantação da Rapública’ na qual o Sam the Kid sublinha que quando há festas em que está presente alguém ligado ao hip-hop ou em que a batida é mais do hip-hop e alguém se zanga, aparecem logo as manchetes a dizer que o problema é do hip-hop. Os problemas vão sempre bater à porta do hip-hop“.

Quais os motivos? “É o que fica sempre no ar”, responde o jornalista e autor. “Andamos há 20 anos a lutar contra isto, mas parece que relatórios como este acabam por trazer sempre o estigma”, lamenta.

Associar criminalidade a um género musical? “É um pouco perigoso”, alerta investigadora

A professora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa Margarida Gaspar de Matos é clara: “É um pouco perigoso fundar a criminalidade no género musical”. Em declarações ao Observador, a investigadora fala em “clusters e agrupamentos”.

O que parece mais óbvio é que os grupos delinquentes, o consumo de substâncias, os estilos musicais, o estilo de vestuário, o afastamento da escola e a dificuldade em sair de círculos de pobreza partilham cenários e coexistem. E, então, em função do que estamos a estudar, encontramos relações”, explica Margarida Gaspar de Matos.

Também a psicóloga Maria Sameiro Oliveira apresenta reservas sobre a conclusão apresentada no Relatório Anual de Segurança Interna. A especialista em psicologia criminal admite que a música pode ser considerada como um fator de agregação de grupos violentos. Ainda assim, defende que não pode ser analisada de forma isolada como uma causa para a prática de crimes.

O que eu considero, e penso que no estudo isso também vem explícito, é que não é só um fator (a contribuir para o aumento da criminalidade). São vários fatores. Quando se fala em agregação, é sobre o fenómeno do grupo, para haver uma identidade de grupo. Está relacionado com gostos musicais ou outros interesses, como por exemplo armas e jogos violentos. E também a questão da falha do sistema familiar, aquilo que vivenciam relacionado com atos de violência. Penso que é este conjunto que poderá definir o aumento da criminalidade”, explica Maria Sameiro Oliveira ao Observador.

Neste sentido, o jornalista Bruno Martins lembra que há projetos de integração social no Porto criados por rappers. “Trabalham com comunidades de bairros, que ajudam a fazer integrações para evitar isso mesmo: que haja aumentos da criminalidade”.

E deixa ainda uma recomendação: “Talvez devesse haver mais intervenção do Estado, para poder, junto das comunidades, prestar mais apoio, para que elas fossem mais seguras, para que os jovens tivessem mais apoio escolar e no trabalho. Não estamos a falar apenas de jovens. Estamos a falar de condições de trabalho. De jovens que são ‘abandonados’ pelos pais que têm de trabalhar das cinco da manhã às dez da noite”.

Ouça aqui na íntegra as declarações de Bruno Martins:

“O hip-hop salvou a vida a muita gente”

A especialista em psicologia criminal Maria Sameiro Oliveira aponta ainda o dedo ao Relatório Anual de Segurança Interna por especificar os géneros do hip-hop e do drill como uma causa da criminalidade de grupo e não considerar apenas a música em geral como um fator de agregação. A especialista avisa que esta escolha pode alimentar o estigma contra estes estilos musicais. “A tendência é ligar só a um fator. Este é o risco de a informação não ser tão clara ou tão necessária”, alerta.

Sam the Kid concorda. Uma vez mais, admite que o “a raiz do drill” pode ser associada aos “gangues de Chicago”. Mas afirma que não se pode generalizar e dá um exemplo: “A Alicia Keys faz drill também. A Alicia Keys também anda a cometer crimes?” Tal como Bruno Martins, o rapper de Chelas afirma mesmo que o hip-hop é hoje um género musical transversal.

As coisas podem ter uma raiz, mas quando se transformam em pop, toda a agente as consome. Por isso, é injusto estarmos a pôr a coisa dentro de uma caixa de violência”, defende Sam the Kid ao Observador.

O músico continua o raciocínio e reforça: “O hip-hop e o drill já não são subculturas. Nos anos 80, 90, eram um estilo de vida alternativo. Atualmente, é uma coisa pop, faz parte da cultura popular”.

E traz para a discussão as redes sociais: “Se calhar, há muitas rivalidades que são usadas através das redes sociais, porque alguém mandou um comentário. E porque é que não culpam o Instagram? Se calhar o Instagram também foi uma razão que causou atrito. Estamos a falar de uma cultura juvenil, que às vezes parte para a violência por estas razões”.

A investigadora Margarida Gaspar de Matos, que estuda ciências comportamentais, destaca ainda, neste contexto, o impacto da pandemia da Covid-19. “O confinamento foi um fator de stress para todos nós e é plausível que, em algumas pessoas, leve ao retraimento e sintomas depressivos; noutras, à transgressão. E essas trajetórias são partilhadas em grupos que depois adotam características distintivas. Temos de abordar com seriedade este ‘desequilíbrio’ pós-pandémico e, sobretudo, ver como apoiar o restabelecimento de um reequilíbrio”, destaca a professora Margarida Gaspar de Matos.

Ouça aqui na íntegra as declarações de Maria Sameiro Oliveira:

Criminalidade e hip-hop? “É apenas um dos fatores”