894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Que bom é o "velho normal" do NOS Primavera Sound, com a catarse de Nick Cave e a nave psicadélica dos Tame Impala

Este artigo tem mais de 2 anos

De um lado Nick Cave, do outro os Tame Impala: foram deles os concertos mais capazes de congregar quem foi a um festival que voltou ao bom "velho normal".

Nick Cave a atuar esta quinta-feira à noite no NOS Primavera Sound
i

Nick Cave a atuar esta quinta-feira à noite no NOS Primavera Sound

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Nick Cave a atuar esta quinta-feira à noite no NOS Primavera Sound

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Onde esteve o tão falado “novo normal” no Parque da Cidade do Porto? Ninguém o viu — dois anos a falar-se dele e esta quinta-feira nem sinal. Discutiu-se muito se a pandemia da Covid-19 mudaria a indústria da música ao vivo, se voltaríamos a estar juntos num festival sem máscaras, distanciamentos e desconfianças. Mas o velho normal está de volta: vimo-lo no primeira dia do festival NOS Primavera Sound.

Só mesmo algumas máscaras, pouquíssimas, denunciavam o interregno de três anos. Se alguém tivesse hibernado desde 2019 e percorresse o recinto do festival durante a missa de Nick Cave & The Bad Seeds ou durante a dança na nave espacial dos Tame Impala, não encontraria diferenças para o velho cosmos que tememos perder.

Se os australianos Tame Impala foram responsáveis pelo concerto mais preenchido do dia, e por fazerem do Parque da Cidade uma longínqua galáxia colorida em que é proibido proibir (a festa e a dança), o pastor do rock and roll e das baladas sagradas Nick Cave fez o que costuma fazer, o que já fizera aqui mesmo em 2018: comover e endiabrar, serenar corações e incendiar almas desejosas da ascensão espiritual do rock and roll. Foram os dois concertos mais marcantes de um arranque que teve ainda atuações de Cigarettes After Sex, Sky Ferreira, Kim Gordon, DIIV, Nídia, Pedro Mafama e Throes + The Shine, entre outros.

Nick Cave: um concerto ou uma eucaristia musical?

Entrou em palco com pontualidade perfeita, às 21h20, exatamente a hora marcada. Não há arranques mornos para Nick Cave, ei-lo logo a deixar para trás os guarda-costas Bad Seeds e um coro de três cantores para descer do palco à plataforma, olhar os fãs nos olhos, agarrar-lhes as mãos e deixar-se tocar, enquanto grita “Get Ready For Love”, da incendiária canção com o mesmo nome que incluiu no disco Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus, de 2004.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por já o termos visto, já lhe conhecemos a dança: desce-palco-sobe-palco, encontro com a congregação devota a deixar-se venerar pelo tacto, voltar lá em cima e agitar o corpo endiabradamente, simulando pontapés, atirando microfones, correndo de uma ponta à outra e saltando do piano para a frente do palco à procura de algo mais: a catarse maior, o grito ou o acorde a que ainda não chegou. É uma busca bestial.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Um concerto pode ser uma eucaristia, Nick Cave prova-o. Não são só os momentos, visualmente portentosos, em que quase se une à multidão, como que eletrificando com o toque e o olhar penetrante as primeiras filas. É também o coro que aqui e ali parece celestial, é uma espécie de libertação que se pressente, comandada pelas notas de instrumentos que se juntam para uma tempestade de outros tempos. A música não parece exatamente deste mundo e Nick Cave, tal como o velho amigo Warren Ellis, não parece exatamente um homem terreno.

Ao longo do concerto, vai desfilando êxitos e escolhas menos previsíveis. Ouvimo-lo cantar em “There She Goes, My Beautiful Word” que só quer “mover o mundo”, falar de outras palavras que “ainda vibram no ar” — tal qual as suas, esta noite. Vemo-lo gritar “look at me now”, “just breathe”, “transforming and vibrating”, palavras de profeta desassossegado em ebulição. Observamo-lo ajoelhado, a tensão a crescer na canção, postura teatral e ar possuído, a deixar o público segurar-lhe o microfone e a ordenar-lhes que “baixem a porra das câmaras [telemóveis]” — mas também à procura do ombro amigo de Warren Ellis, num abraço sentido.

As palmas sucedem-se a cada tema, mas por vezes é ele que agradece ao público: “Thank you very much, fucking portuguese people — great, great collection of portuguese people”. E sucedem-se os temas: “The Weeping Song”, “O Children” (dedicada “às crianças”, por alguém que já perdeu dois filhos), “Jubilee Street”, a belíssima e mais recente “Bright Horses”, a desolada “I Need You” e muitos mais, como os velhinhos — mais ou menos afamados — “Red Right Hand”, “The Mercy Seat”, “The Ship Song” e “City of Refuge”.

Acaba ajoelhado e de braços no ar, depois de cantar “White Elephant”, aclamado e agradecido: “Boa noite, obrigado Portugal, boa noite, muito obrigado”. Ensaia-se a despedida mas há um regresso para encore, ouve-se o clássico “Into My Arms” ao piano, seguem-se ainda “Vortex” e “Ghosteen Speaks”. Está terminada a comunhão, que a espera agora não seja longa.

12 fotos

Na galáxia distante dos Tame Impala, dança-se cada vez mais

Bem diferente — não menos eficaz — foi o concerto dos Tame Impala, que tinham uma multidão à sua espera no Parque da Cidade. A banda australiana que conseguiu voltar a levar o rock para terrenos cósmicos, para as paragens dos sonhos ácidos e psicotrópicos à 60’s, atuou pela sexta vez em Portugal mas pela primeira vez no NOS Primavera Sound. Tendo em conta a reação, não há-de ter sido a última.

Com um psicadelismo mais ancorado nos riffs de guitarra, inicialmente, e na batida eletrónica, depois, os Tame Impala foram-se tornando uma das grandes bandas da última década e meia. Provaram-no na noite de esta quinta-feira e madrugada de sexta-feira no Porto, fazendo do recinto uma discoteca de ficção científica.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Com um jogo de luzes incrivelmente trabalhado, ainda que suscetível de incomodar os mais sensíveis, o grupo de Kevin Parker ia tocando sem grandes focos de luz sobre os membros da banda e com imagens alucinogénias a passar atrás de si — nos ecrãs laterais, nas raras vezes em que eram filmados em palco, surgiam distorcidos, acentuando a ideia de viagem para mundos menos nítidos.

Agradecendo ao público que compareceu em peso, garantindo que “é ótimo voltar aqui” e lembrando que “já passou algum tempo, finalmente conseguimos voltar a Portugal”, o vocalista ia comandando esta nave de groove drogado. O último disco The Slow Rush (de 2020) não ecoa nos corações de quem os acompanha com a força dos anteriores e por isso foram temas mais antigos, como “Elephant”, “Let It Happen”, “Feels Like We Only Go Backwards”, “Eventually” e “The Less I Know The Better”, que levantaram mais telemóveis. Ainda vimos confettis a explodir: um fim em beleza no palco principal.

Um início de dia a reencontrar o Primavera

Recuemos porém umas horas, até às 17h. Deitados na relva, ainda fofa, com o sol quente lá no céu, até nos esquecemos que precisamente ontem, nesta cidade, o cinzento e a chuva miudinha reinavam. “Hoje é dia de festa”, cantam os Throes + The Shine no Palco Super Bock, as pessoas abraçam-se, trocam olhares cúmplices de primeiro dia de festival.

Para muitos, a edição de 2022 simboliza o reencontro. Reencontro com as caras que se foram conhecendo neste parque desde 2012 e que, cumprindo um juramento nunca oficializado em papel ou em aperto de mão, se tornaram irmãs de primavera; reencontro com os grandes festivais de verão, o corpo a dançar ao ar livre, vento a despentear-nos o cabelo, fotos para a posterioridade; reencontro connosco mesmos, com o ritual tântrico de nos revelarmos através da música, existirmos através dela. “Todos nós queremos a felicidade”, canta a turma de Diron, Marco e André. As primeiras filas a saltar, o pessoal do fundo refastelado, sorrisos na cara. Claro que queremos.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Primeiro concerto visto, rebolámos até ao palco vizinho onde encontrámos Pedro Mafama no seu outfit Tony Manero, versão cor de rosa: um “M” bordado nas costas do casaco e aquela sonoridade que parece trazida dos ventos do Magrebe e aterrada na nova Lisboa, onde os géneros se diluem sem perder o cheiro de Alfama, o compasso das marchas. Ele tem os amigos certos do seu lado, “bate na madeira quando pensares em mim”. Desfila o seu reportório seguro, lembrando que ele próprio já esteve deste lado, cabeça levantada para o palco a admirar os nomes que fizeram dele o artista que é. Por isso abraça-nos com o seu “obrigado” e lá prossegue, com auto-tune na voz, “eu não saio não”, até à mordida do Lacrau, “os que sabem cantem comigo para ensinarmos a letra a quem não sabe”.

Deixámo-lo para trás, com a sua aula, para nos lançarmos pelos labirintos diurnos desta edição. Como uma cidade eternamente insatisfeita a mudar os sentidos de trânsito, também o Primavera reorganizou as suas estradas. Não ao ponto de nos enfiarmos em contramão — a planta, regra geral, é-nos familiar. Porém, à procura do Binance esbarramos no Bits, inversão de marcha e ah, a clareira que queríamos. Convenhamos: a troca de nome do palco, lei do patrocinador mais forte a funcionar, e o sentido de orientação turvado por dois anos de interregno forçado, não ajudam as cabeças que sofrem de um GPS mal calibrado. E assim só nos foi possível ter um cheirinho de Penelope Isles, concerto que alguns nos confidenciaram ter sido uma boa revelação.

Em caso de desnorte total, também não vale a pena entrar em pânico: é só seguir a música. Com isto em mente, deslizámos até DIIV, fim de tarde no Parque da Cidade, “Under the Sun” no ar a apontar o caminho para o palco Cupra. Nesta zona, relva nem vê-la. Estamos no cimento, nas guitarras dos miúdos de Brooklyn que, com a sua sonoridade entre o shoegaze e o grunge, lembram um tempo em que este mesmo cimento ficaria impregnado de copos de plástico, despojos da muita cerveja bebida.

Hoje felizmente já não é assim, os copos reutilizáveis custam €1, cada pessoa tem o seu e o chão e o ambiente agradecem. Não é uma novidade, mas é sempre bom lembrar. E o que é bom nunca passa de moda, como os DIIV, t-shirt vestida por cima da camisola de manga comprida na mais pura alma dos noventa, aqui resgatada para o novo milénio. Confessam que não estavam a contar com tanta gente como aquela que têm diante de si, uns de pé, outros sentados nas bancadas montadas em L, criando uma pequena arena neste palco.

“Jeeesus”, exclama Colin Caulfield antes de se atirar para “Oshin”, o álbum que celebra este mês dez anos e “Doused” a dar mais um puxão à plateia. “Adoramos Portugal”, dizem e, como que a provar que não são apenas palavras bonitas para encantar a plateia, contam-nos que a última vez que cá estiveram foi no aniversário de Ben Newman, baterista do grupo. Mais duas músicas a selar uma atuação sólida, bem mais sólida do que aquela que vimos em 2018, em Paredes de Coura. Deixam o palco vazio com “Suicide is Painless”, de Johnny Mandel e Tom Bahler, a soar no ar.

O lusco fusco, essa hora rubi, é pintado a Sky Ferreira, que se atrasou vinte longos minutos, tempo de apanharmos gente sentada na relva a tricotar. As agulhas não pararam quando a americana chegou e, a bem dizer, tão rapidamente apareceu com o seu rasto de eighties, meia dúzia de canções entoadas como se estivessem a sair de um shuffle de plataforma digital, como desapareceu, levando consigo o seu desconcertante casaco amarelo, algo entre o cantoneiro chique ou a farda IKEA, versão Portugal Fashion. Pôs-se o sol, antes de virem os figurões da noite: Nick Cave e Tame Impala.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A noite não se fez apenas de cabeças de cartaz, porém. Detemo-nos nesta noite invulgarmente quente para o histórico de este festival e, pela segunda vez no dia, metemo-nos fatalmente pelo caminho errado. Que pedras são estas, espécie de antas que se sucedem e onde vários corpos descansam? Sem querer, caímos na era megalítica do festival. Tudo bem, daqui ouve-se Cigarettes After Sex com suficiente definição para alguns não se dignarem a mover, tão aconchegadinhos estão na relva.

Sentimo-nos tentados a fazer o mesmo, mas as pernas lá começaram a locomover-se. Furada a fila do stand dos cigarros eletrónicos, entrámos no microclima do dream pop destes norte-americanos: “Nothing’s Gonna Hurt You Baby”, “Sweet”, “K”, tudo a eito com pôr do sol a preto e branco a passar na tela do fundo do palco.

A voz sibilante de Greg Gonzalez tem o condão de ser encantatória para alguns, olhos brilhantes agarrados às grandes, profundamente chata para outros, que se sentam nas bancadas do Cupra só a ver a vida a passar. Não vamos tomar partido de nenhum dos lados, estamos com o estômago pouco preparado para discussões acérrimas e para apocalipse basta-nos o que já vem do palco. You’ve been locked in here forever / And you just can’t say goodbye.

A bem ou a mal lá tivemos mesmo de dizer adeus, porque os Tame Impala estavam a começar. Foi-se a doçura sussurrada, veio a festa escapista. Esta sexta-feira, o festival prossegue com concertos de Pavement, Beck, King Krule, Jenny Beth, Rita Vian, Arnaldo Antunes e Maria José Llergo, entre outros.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.