A recuperação de mais de 4.000 notas destruídas nos incêndios de Pedrógão Grande foi o trabalho que mais emocionou a equipa do Banco de Portugal, mas a maioria das notas valorizadas estiveram enterradas durante vários anos.
“O que chega mais são pessoas que enterram as notas com a esperança de que fiquem iguais quando precisarem delas, mas quando as vão desenterrar percebem que os bichinhos e a humidade fazem o seu trabalho”, conta à Lusa o coordenador do serviço de valorização de notas que o Banco de Portugal tem no Carregado (concelho de Alenquer).
No complexo de alta segurança, onde estão guardadas as 173 toneladas de ouro numa casa-forte, há fabricação de notas (pela empresa Valora), se acumulam paletes de notas à espera das empresas de transporte de valores (que as distribuem pelos bancos e grandes superfícies) e onde existem um laboratório para análise de contrafações e um departamento de escolha e destruição de notas, há também um pequeno departamento que tem duas funcionárias (que podem ser mais em períodos de pico de trabalho) cujo trabalho é tentar ‘recuperar’ notas estragadas para devolver aos cidadãos dinheiro que, de outro modo, seria perdido.
Guardar notas em casa é um hábito dos portugueses — seja em gavetas, em arrecadações ou enterradas — mas as notas são deterioráveis e muitas ficam estragadas pela humidade, com bolor, aparecem roídas por ratos ou são comidas pelos vermes da terra. Há ainda as que ficam destruídas em incêndios (geralmente domésticos).
Para evitar que os cidadãos percam esse dinheiro, o Banco de Portugal tem um serviço gratuito de valorização de notas: os cidadãos podem entregar as notas estragadas ou mutiladas nos postos do Banco de Portugal ou até enviar pelo correio.
Para que uma nota de euro seja valorizada, mais de 50% da superfície tem de poder ser reconstituída para que seja possível garantir a sua autenticidade pelos elementos de segurança (no caso das notas de escudo a regra eram 75%). Se a conseguirem valorizar, destroem a nota e pagam o valor correspondente. Já se as notas forem irreconhecíveis, são dadas como perdidas, destruídas e a proprietário não recebe qualquer compensação.
Segundo José Luís Ferreira, coordenador da área operacional do numerário (onde se encontra a unidade de valorização de numerário), um dos casos que mais marcou e emocionou o serviço que lidera decorreu dos incêndios de 2017, sobretudo em outubro, na zona de Pedrógão Grande, em que centenas de casas arderam com tudo o que estava lá dentro, incluindo notas guardadas.
A maior parte das notas terá sido consumida pelo fogo mas, ainda assim, foram valorizadas pelo Banco de Portugal 4.022 notas, que estavam guardadas em casas e empresas.
Um empresário enviou para o Banco de Portugal cerca 60 mil euros que tinha dentro de um cofre para pagar os salários aos trabalhadores. O cofre não foi consumido pelas chamas, mas a proximidade do calor fez com que as notas tivessem ficado ‘cozidas’. O empresário ligava regularmente a perguntar quando estaria concluído o trabalho para poder pagar aos seus funcionários, que já tanto tinham perdido nos incêndios.
Segundo José Luís Ferreira, a funcionária que fez esse trabalho — e que agora já está na reforma — “chorou quando concluiu a valorização das notas”. O montante foi integralmente devolvido.
“Foi uma situação muito delicada e honra-nos ter aliviado um bocadinho o sofrimento daquelas pessoas”, afirma o responsável do Banco de Portugal na entrevista à Lusa.
O ano de 2017 foi, precisamente, o primeiro em que foi ultrapassado o valor de um milhão de euros devolvido a cidadãos pelo serviço de valorização de notas do banco central, também devido às mais de 4.000 notas destruídas nos incêndios. Então, foram valorizadas 35.636 notas de euro no valor de quase 1,4 milhões de euros e 2.433 notas de escudo no valor de 27 mil euros.
São entregues ainda no Banco de Portugal notas que estiveram guardadas em fossas, notas recortadas por crianças e até já chegaram notas descobertas na exumação de um cadáver, enviadas pelo Instituto de Medicina Legal por ordem judicial. O montante valorizado fica para os herdeiros ou a favor do Estado, conforme despacho do juiz.
Também é frequente aparecerem notas em milhares de tiras. Nestes casos, acontece as pessoas porem dinheiro dentro de envelopes e quando destroem papel nas máquinas trituradoras põem também esses envelopes por engano. Pelos técnicos já passaram sacos com milhares dessas tiras, de notas diferentes, cabendo-lhes passarem horas e horas a montar o puzzle para tentar recuperá-las.
Há não muito tempo, o Banco de Portugal recebeu notas vindas do Minho que tinham caído em mosto de vinho verde tinto, possivelmente de alguém que a tirar objetos do bolso deixou cair o dinheiro. “Era um cheiro inacreditável aqui a vinho verde tinto”, conta José Luís Ferreira.
Para casos como este, ou de notas que estiveram em fossas, o Banco de Portugal tem um equipamento de desinfeção das notas e que suga os cheiros e resíduos. Também os funcionários têm equipamentos de proteção para quando a situação o exige.
No dia em que a Lusa visitou este serviço do Banco de Portugal, tinham acabado de chegar notas que alguém guardou plastificando-as uma a uma, pensando que assim se preservariam melhor. Mas, dentro do plástico, as notas estavam destruídas.
O facto de as notas terem na sua composição algodão facilita a ação da humidade e de fungos e vermes.
A ajudar os técnicos que valorizam as notas estão máquinas. Uma das máquinas, feita propositadamente por uma empresa de Braga, tira fotografia aos fragmentos e indica a proporção exata de nota que pode ser valorizada.
Aquando da visita da Lusa, a uma nota de 20 euros danificada, aparentemente roída de ratos, o computador atribuiu uma valorização de 59%, o que significa que esse valor será pago ao apresentante da nota ou ao legítimo proprietário.