Está dado o primeiro passo para o que pode ser, na prática, a proibição da prostituição em Espanha. O Parlamento espanhol aprovou esta semana, na generalidade, uma mudança no Código Penal que passa a punir todo o proxenetismo — uma área cinzenta, sem resposta legal até agora, no quadro legislativo espanhol –, com o apoio de vários dos maiores partidos, mas também com a oposição de algumas representantes e porta-vozes das trabalhadoras sexuais em Espanha.

O El Mundo falou com uma delas: trata-se de Valérie May, que tem 33 anos e é prostituta há seis, e critica o PSOE — partido que está no poder, junto ao Podemos, e avançou com esta proposta — por argumentar que não há mulheres que escolham livremente ser prostitutas.

“É o pão de cada dia. Não querem olhar para nós, porque isso seria romper com crenças morais e ideológicas”, ataca. É um dos lados de um debate que se prolonga há anos e que opõe quem liga a prostituição, inevitavelmente, a exploração sexual — uma ligação que a lei, se a sua versão final passar no Parlamento, passará a assegurar — e quem argumenta que o caminho não deve ser a proibição, mas antes o diálogo com estas mulheres, para que seja possível dar-lhes melhores condições de trabalho e segurança.

Em Espanha, o Supremo Tribunal reconheceu, no ano passado, o direito das prostitutas a sindicalizarem-se, dando um passo contrário ao que acontece agora. “Reconheciam o nosso direito a existir”, resume a porta-voz da Organização das Trabalhadoras Sexuais, Concha Borrell, também em declarações ao El Mundo.

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O que diz a lei?

A lei foi aprovada na generalidade com votos de PSOE, PP e parte do Podemos, mas sem o apoio de outros partidos que apoiam o Governo: ERC, EH Bildu e PNV. Resultado final: uma maioria clara, com 232 votos a favor, 38 contra e 69 abstenções.

E prevê, como lhe chama o El País, uma “ofensiva” em várias frentes: condena, criminalmente, o proxenetismo, mesmo que tenha consentimento da mulher que se prostitui, deixando de criminalizar apenas o que for considerado “exploração” da pessoa; prevê uma multa para os clientes; e outra multa, ou pena de prisão, para quem seja dono de um local onde se pratique prostituição.

O que querem os partidos?

Politicamente, apesar de haver uma maioria muito confortável favorável à lei, a questão abre algumas brechas no governo: o parceiro do PSOE, o Podemos, inclui a corrente En Comú Podem, que votou contra a mudança na lei, argumentando: “Não queremos criminalizar nem estigmatizar nenhuma mulher, queremos ouvi-las”. Mais uma vez, é a diferença entre os que querem uma proibição tout court da atividade, fazendo-a equivaler inequivocamente a exploração e crime, e entre os que preferem regulá-la.

O PSOE foi o partido responsável por avançar com a proposta, defendendo frontalmente a abolição “sem nuances”, como descreve a rádio Onda Cero. A porta-voz do partido no Parlamento, Adriana Lastra, foi taxativa: “Em democracia, as mulheres não se compram nem se vendem. O comércio com o corpo das mulheres é o último resíduo do sistema esclavagista”.

O Unidas Podemos (antigo Podemos) apoia, maioritariamente, a lei, mas divide-se, como já foi referido. Já o PP mostrou-se de acordo, mas avisou que ainda vai querer ouvir as várias posições para perceber se há “uma vontade de avançar na defesa dos direitos e liberdades das mulheres”. Será uma questão de moldes da lei, já que historicamente o partido é contra a legalização ou regulação da prostituição.

Os restantes partidos, que somam menos votos, mostraram-se contra ou abstiveram-se: o Ciudadanos, por exemplo, acusou PSOE, PP e Unidas Podemos de “puritanismo” e de “restringir liberdades”; o Vox considerou que a prostituição “é um mal” mas que se deve pensar em alternativas e soluções para estas mulheres.

Os argumentos de quem se opõe à lei

Ao El Mundo, Valérie May, autora do livro que vai ser publicado em outubro “Puta e livre”, diz que quando começou a trabalhar como prostituta falar do assunto era “super cool”, mas os ventos mudaram: desde 2018, argumenta, “tem havido muita pressão por parte das organizações abolicionistas”.

O resultado, defende Borrell, é um projeto de lei “sem pés nem cabeza, feito à imagem e semelhança do feminismo institucional, rançoso e longe  da realidade do século XXI”, por um Governo que vai dificultar a vida “às mulheres mais vulneráveis do mercado laboral” e a quem pede que “faça marcha-atrás”.

Além disso, acrescenta May, criminalizado a ação de quem procura uma prostituta o resultado será prejudicial para as mulheres, uma vez que os clientes quererão pagar menos pelos serviços, já que correm o risco de ser multados.

A realidade da prostituição em Espanha

Hoje em dia, a prostituição não é legal nem ilegal em Espanha: está numa situação de indefinição jurídica, embora seja possível condenar pessoas por “exploração” destas mulheres — o “proxetenismo coercivo”, que implica que haja violência ou intimidação para obrigar alguém a prostituir-se , desde que a vítima seja vulnerável ou esteja em condições “gravosas, desproporcionais ou abusivas”.

Como conta o El Diario, faltam dados oficiais para caracterizar a situação, e os que há são díspares. Os dados mais recentes das Forças e Corpos de Segurança do Estado apontam para a existência de 1.600 bares de alterne e locais onde se pratica prostituição; há dez anos, um relatório do Centro de Inteligência contra o Crime Organizado do Ministério do Interior estimava que haveria cerca de mil mulheres em situação de exploração sexual, mas um estudo do sociólogo Antonio Ariño, da universidade de Valência, citado pelo mesmo jornal, indicava que seria mais perto de 100 mil.