A ministra da Saúde, Marta Temido, pediu desculpa pelas falhas que se estão a verificar nos serviços hospitalares, nomeadamente nas áreas de ginecologia e obstetrícia.
Sabendo-se que havia momentos deste verão em que era difícil garantir o funcionamento de todos os serviços, poder-se-ia ter tomado logo a iniciativa de garantir o funcionamento articulado”, admitiu na audição regimental na Comissão de Saúde desta quarta-feira, durante a manhã.
Em resposta aos deputados do Chega e da Iniciativa Liberal, a ministra acrescentou: “Não sei que parte é que ainda não entenderam do meu sentimento de responsabilidade com tudo o que falha no SNS, desde os telefonemas que ficam para fazer, casas de banho que não funcionam, ares condicionados que não funcionam, pessoas à espera, contactos que ficam feitos, por vezes a rudeza no contacto”.
“Não sei que parte é que ainda não perceberam que a responsabilidade é sempre e totalmente minha e é a parte, obviamente, pela qual peço desculpa“, acrescentou, confessando ter a ambição de “deixar a outros ministros da Saúde um melhor contexto e melhores condições”.
Mais tarde, na segunda ronda de questões, mas mais uma vez sobre o mesmo assunto, Temido deu um passo ao lado: “O facto de um serviço estar desviado não significa que a rede não dá resposta, significa que naquele momento há uma indisponibilidade temporária num local concreto”.
“O que importa é saber se a rede no seu todo funciona”, frisou a ministra da Saúde, comparando o ato de recorrer a um serviço de urgência hospitalar com o de procurar uma farmácia de serviço. O essencial, continuou, é tornar essa informação disponível para que os cidadãos possam saber onde se dirigir em caso de necessidade.
Novo estatuto do SNS será discutido em Conselho de Ministros na próxima semana
O novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai ser discutido em Conselho de Ministros na próxima semana, anunciou ainda a ministra Marta Temido na audição regimental da Comissão de Saúde desta quarta-feira. As alterações legislativas necessárias para executar o novo estatuto terão de ser aprovadas até 180 dias depois da data da entrada em vigor do diploma.
O novo programa sugere a criação de uma direção executiva do SNS que assumirá a coordenação da resposta assistencial das suas unidades de saúde. Isso assegurará “o funcionamento em rede, monitorizando o seu desempenho e promovendo a participação dos utentes”.
Sabemos que o SNS enfrenta problemas na organização da sua resposta. Sobretudo na retenção, organização do trabalho e motivação dos profissionais de saúde, que se apresentam como dificuldades de acesso com que os utentes se confrontam. Os últimos dias tem-no mostrado, tal como têm mostrado quão necessárias são as transformações de que falamos”, considerou a governante.
Marta Temido reiterou que a atribuição de uma equipa de saúde familiar a todos os cidadãos em Portugal continua a ser “a principal prioridade setorial”. A ministra aponta três compromissos para ainda este ano: “implementar o regime de trabalho em dedicação plena”, “valorizar as carreiras dos enfermeiros” e “criar a carreira de técnico auxiliar de saúde”. Admitiu a importância de melhorar os salários dos médicos, mas também acrescentou: “Os médicos não se movem apenas por dinheiro”.
Num balanço ao número de profissionais de saúde ao serviço do SNS, Marta Temido apontou que “são conhecidas as dificuldades com que também o SNS se confronta”. Mas que, em abril, o sistema dispunha de mais 31.800 trabalhadores do que em 2015. São cerca de 4.000 eram médicos, 11 mil enfermeiros, 2.000 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e 6.000 assistentes operacionais.
Sobre a recuperação da atividade assistencial, constrangida pela resposta à pandemia de Covid-19, a ministra da Saúde avançou que o SNS realizou mais 142 mil consultas e de 70 mil cirurgias. Os rastreios oncológicos também aumentaram, aponta Marta Temido: o número de mulheres rastreadas cresceu 13% na vigilância do cancro da mama e 16% no rastreio do cancro do colo do útero. Também houve mais 4% de rastreios do cólon e reto. E o número de operados em cirurgia oncológica em abril aumentou 32% em relação a 2019.
Nos primeiros cinco meses deste ano, comparando com o mesmo período de 2019, o SNS realizou mais 1,2 milhões de consultas médicas, mais 193 mil consultas de enfermagem, mais 78 mil consultas de outros técnicos de saúde — isto nos cuidados de saúde primários —, além de mais 112 mil consultas e 23 mil cirurgias nos hospitais.
Taxa de mortalidade materna é de “pequenos números”
Depois de Marta Temido ter elogiado as “escolhas” governamentais que permitiram recuperar a atividade assistencial aos níveis pré-pandemia, Ricardo Baptista Leite (PSD) afirmou que, depois de sete anos de Governo, esperava “humildade” para assumir as falhas que decorreram nos últimos quatro anos de governação. “Quando vemos o enorme esforço dos profissionais de saúde, é preciso assumir que houve um desvio absoluto de recursos para tratar doentes com Covid-19”, exemplificou o deputado: “Os doentes não-Covid ficaram para trás”.
O social-democrata acusou a ministra de ter desvalorizado os problemas nos serviços de urgência, dizendo que eram pontuais, quando depois o primeiro-ministro assumiu que eram “estruturais”. Mencionando as falhas que estão a encerrar serviços de ginecologia e obstetrícia, Ricardo Baptista Leite considerou que “é importante para as mulheres grávidas que estão em casa a assistir a todo este cenário saibam o que falhou e o que não falhou“. E porque é que, neste momento, a taxa de mortalidade materna está agora em níveis tão elevados como os que se verificavam em 1992.
Embora concorde que “todos os óbitos são fator de consternação e solidariedade”, Marta Temido considerou que essa taxa exibe “pequenos números”. Em 2020 a Direção Geral da Saúde considerou 17 óbitos de mulheres grávidas ou nos 42 dias após o parto, “mas em 2019 eram 10, em 2018 15, em 2017 11, em 2016 12, em 2016 seis, em 2015 sete, em 2014 cinco”, listou Marta Temido. Ou seja, “estamos a falar de pequenos números” que deviam ser interpretados “numa lógica de séries temporais de cinco a 10 anos”.
Questionada pelo deputado sobre o destino das Administrações Regionais de Saúde (ARS) após a criação de uma direção executiva do SNS, Marta Temido apontou que a solução está na descentralização de competências na área da saúde para os municípios.
Fará sentido, com a criação de uma coordenação mais articulada ao nível central na prestação cuidados, que se possam reservar as ARS para uma função que não a prestação de cuidados, dando mais autonomia aos ACES [Agrupamentos de Centros de Saúde]”, sugeriu.
Concursos para vagas de médicos não bastam. Ministra admite contratações diretas
Após a intervenção da deputada Catarina Martins (BE), Marta Temido admitiu que os concursos para médicos especialistas não respondem a todas as necessidades do sistema e avançou com a possibilidade de o Governo permitir contratações diretas. A governante explicou que o Ministério da Saúde só abriu as vagas que tinha a expetativa de preencher por causa da falta de médicos recém-formados a entrar no sistema.
Catarina Martins diz que há “perplexidade” com o número de vagas abertas: “Em Setúbal, duas vagas. É mais que o Médio Tejo, mas já tinha 11 especialistas a menos”, exemplifica a deputada. “Como é que abrindo uma vaga aqui e ali, se considera que o Governo vai resolver os problemas?”, questionou.
“Abrimos vagas que resultam da junção de necessidades manifestadas pelos serviços e da disponibilidade de especialistas”, respondeu Marta Temido. Mas “há mais necessidades do que as que estão expressas no concurso e esperamos que por via da contratação direta algumas delas possam ser satisfeitas“, afirmou Marta Temido. Catarina Martins elogiou que “finalmente” essa medida estivesse em cima da mesa, como tem sido sugerido pelo Bloco de Esquerda.
Sobre as 1.639 vagas para médicos, Maria de Fátima Fonseca, secretária de Estado da Saúde, admite que o Governo tem “a expetativa” que os profissionais de saúde entrem em funções no prazo de um a dois mês, até ao fim de julho.
Ainda antes da colocação de perguntas pela bloquista, a ministra tinha respondido às críticas do PSD e de Pedro dos Santos Frazão (Chega) sobre a falta de médicos de família — falhando a uma antiga promessa para garantir que todos os portugueses teriam uma equipa de medicina geral e familiar. Segundo Marta Temido, entre janeiro e maio deste ano foram realizadas 1,7 milhões de consultas de medicina geral e familiar.
Um milhão dessas consultas ocorreram na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde está a maioria dos utentes sem médico de família — que são 1,4 milhões de pessoas —, acrescenta a ministra. Marta Temido apontou que é por isso que cerca de 200 das 239 vagas abertas para unidades de cuidados de saúde personalizados são nessa mesma região. As restantes vagas serão abertas nas outras regiões mais carenciadas do país, nomeadamente Algarve e Alentejo.
Não há “preconceito ideológico” no caso das parcerias público-privadas
Depois de o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) ter criticado a ministra sobre a disponibilidade dos privados na gestão da parcerias público-privadas (PPP) na área da saúde, Marta Temido recusou que haja “preconceito ideológico” no término de contratos desta natureza. Há, isso sim, “um quadro legal a que estamos todos obrigados”.
Sobre o caso do Hospital de Cascais, a ministra explicou que está a decorrer a prorrogação do atual contrato de gestão, do Grupo Lusíadas Saúde, até 31 de dezembro deste ano. Está a decorrer um novo concurso e “foi isso o que não foi possível encontrar nas outras parcerias público-privadas”. Em Cascais, o Grupo Ribera Salud “está a trabalhar com a ARS de Lisboa e Vale do Tejo sobre uma despesa com um limite máximo de 561 milhões de euros, com duração de oito anos. O contrato entrará em vigor a 1 de janeiro de 2023.
Já em resposta ao deputado Rui Cristina, do PSD, que questionou a ministra sobre o ponto de situação do novo Hospital Central do Algarve, em projeto desde 2002 e desde o final de maio deste ano e até ao fim de setembro em fase de “diligências que assegurem o procedimento para construção e equipamento”, Marta Temido não revelou detalhes mas voltou a assegurar que “as Parcerias Público-Privadas ou as Parcerias Público-Públicas são sempre uma alternativa”.
Dando como exemplos dois acordos de cooperação para a prestação de cuidados de saúde primários celebrados entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a União das Misericórdias Portuguesas, a ministra da Saúde garantiu que o Governo não tem “qualquer problema” em que estas opções sejam tomadas — desde que “transitória e localizadamente”, ressalvou.
“Temos de ter noção que sempre que recorremos a elas estamos a concorrer dentro do próprio sistema”, disse a ministra. “Há a uma questão a que não fugimos, que é a da manutenção da gestão pública e da boa resposta aos portugueses.”
Reunião para criação de nova especialidade agendada para a próxima semana. Já a descentralização prossegue mas abaixo do esperado
Questionada sobre a criação de uma especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, ainda inexistente em Portugal, ao contrário do que acontece na maior parte dos países europeus, Marta Temido voltou a recordar que é da Ordem dos Médicos que depende esse tipo de iniciativa — mas logo a seguir revelou que está agendada para a próxima semana uma reunião entre Ministério e Ordem com esse ponto na ordem de trabalhos.
Já sobre o processo de descentralização na saúde, a ministra revelou que só 50 municípios, de entre o total de 201 abrangidos (excluindo os da Madeira e dos Açores), assinaram já os respetivos autos de transferência.
Recordando que o quadro de transferências foi desenhado a 30 de janeiro de 2019, numa conjuntura completamente diferente, a nível financeiro e não só, a ministra da Saúde, que no início deste mês de junho tinha previsto que até meio do ano pelo menos metade dos concelhos já tivessem acordado com o Governo os detalhes do processo, preferiu agora realçar que o processo “está a avançar”.
Temido lembrou ainda que o processo se adivinha longo e que a assinatura dos autos de transferência é só o início. “É apenas o primeiro passo de um processo e não o último passo de um processo em que alguém se exime de uma responsabilidade que não quer ter.”
“Falamos sempre do que corre mal, nunca falamos do que se vai resolvendo, por pouco que seja”
Aproveitando uma questão colocada pela socialista Mara Lagriminha sobre o alargamento do horário do serviço do centro de saúde de Coruche, Marta Temido aproveitou para voltar ao tema da falta de recursos no SNS.
A ministra explicou que, no caso em concreto, até ao final de setembro a unidade de saúde deverá passar a funcionar também entre as 20h e as 24h (incluindo aos fins de semana e feriados), referindo a falta de profissionais de saúde e a necessidade de assegurar os seus tempos de descanso para justificar o prolongamento do atendimento apenas até à meia-noite, em vez de durante todo o período noturno: “É preciso fazer escolhas. Os recursos não são elásticos”.
A seguir, antes de dar por encerrada a sua intervenção, cinco horas após o arranque dos trabalhos, Marta Temido, que tinha sido questionada pela social-democrata Fernanda Velez sobre o calendário previsto para a tão propalada reforma do SNS, lamentou as críticas e deixou um desabafo: “Falamos sempre do que corre mal, nunca falamos do que se vai resolvendo, por pouco que seja”.
Depois, voltou a apontar para o calendário. “Acreditamos que a primeira reforma surge da aprovação do novo estatuto do SNS com a discussão no Conselho de Ministros na próxima semana”, disse, para, ato contínuo, realçar dois dos pontos previstos no novo regulamento — a intervenção dos trabalhadores nos conselhos de administração das entidades públicas empresariais e a participação dos cidadãos, que serão “chamados a intervir nos processos de tomada de decisão que afetem a prestação de cuidados de saúde à população”.
Antes de ser encerrada a comissão, ainda mantendo o tom de indignação, Marta Temido inverteu a ordem e fez ela própria uma questão: “Se isto não é uma reforma, pergunto se só será a uma reforma proceder a cortes salariais e a cortes cegos?”.