Ao longo da sua vida enquanto colecionador, o arménio Calouste Sarkis Gulbenkian seguiu uma notável coerência, misturando a paixão pessoal com o legado cultural potenciado pelo sangue que lhe corria nas veias.

Nesse sentido, não se estranha que o seu extraordinário acervo em forma de coleção incluía maravilhosas peças de tapeçaria, tapetes e têxteis, sendo esses objetos muito associados ao imaginário do Médio Oriente e Ásia, sendo esse o ponto de partida e foco desta edição do podcast Only the Best, uma parceria entre o Museu Calouste Gulbenkian e a Rádio Observador, que vai para o ar a cada quinze dias, como sempre, com o historiador Rui Ramos, anfitrião deste programa, ao leme, e as fascinantes contextualizações históricas reveladas por João Carvalho Dias, diretor-adjunto do referido museu.

Tesouros do Irão

Ao longo das últimas sessões deste podcast “já falámos de moedas, pinturas, esculturas e, mais recentemente, de manuscritos. Hoje, vamos dedicar a nossa conversa aos tecidos preciosos, nomeadamente de tapeçaria”, refere Rui Ramos.

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“A arte do tapete é, por nós, ocidentais, muito associada ao mundo do Médio Oriente e da Ásia Central, Turquia, Pérsia, Afeganistão, Índia, como aos grandes bazares e também à arte da negociação comercial”, continua o historiador, «sobretudo os tapetes persas do século XVI e XVII, que, desde cedo, impressionaram os colecionadores europeus pela riqueza dos seus materiais, cores vivas e desenhos muito elaborados. Aliás, Arthur Upham Pope, grande especialista em arte do referido quadrante, via os tapetes persas como ‘uma grande sinfonia na variedade de temas que contêm e harmonizam como se fossem melodias’.”

Nesse sentido, e por essa razão, «poderemos dizer que, através do gosto pelos tapetes, Gulbenkian estava a manter uma ligação com as suas origens no Império Otomano e com a região onde tinha os seus interesses petrolíferos, ou era simplesmente mais um tipo de arte que interessava geralmente aos colecionadores do seu tempo?”, pergunta Rui Ramos.

“É essencial não ignorar que a família de Calouste Gulbenkian estava envolvida na comercialização de tapetes, e que no seu livro La Transcaucasie et la Péninsule d’Apchéron, publicado em 1891, aos 22 anos, Gulbenkian refere o seu interesse sobre tapetes, sobretudo os do Cáucaso”, lembra João Carvalho Dias, referindo ainda que o arménio “escreveu mesmo sobre as suas técnicas de execução e revelando-se ‘colecionador’”.

Além disso, continua o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, “os tapetes eram apreciados cada vez mais pelos colecionadores e Gulbenkian não perdeu tempo e adquiriu os chamados ‘tapetes clássicos’”. Em especial, na década de 1920, sabe-se que “os grandes tapetes de Isfahan, cidade do Irão, decoravam a casa da avenue d’Iéna, em Paris, sendo esse um período em que Gulbenkian enfrenta, apesar das convulsões económicas, a concorrência dos colecionadores americanos”, revela Carvalho Dias, existindo mesmo uma especial procura dos tapetes florais em seda do referido local, e o mercado americano irá absorver muito destes magníficos exemplares, o que faz com que os preços quase duplicassem. Neste ‘duelo’, registe-se a curiosidade recíproca entre Gulbenkian e Rockefeller no que respeita ao colecionismo, em particular de tapetes”, acrescenta.

Um aliado norte-americano

Tal como na aquisição de outras obras de arte, “Gulbenkian apoiou-se em estudiosos e curadores de museus”, afirma Rui Ramos. No caso dos tapetes orientais, contou também com o precioso apoio, “do já referido professor Arthur Upham Pope, que, numa carta, terá dito a Calouste que o arménio era, na altura, ‘a única pessoa no mundo que podia reunir uma coleção de tapetes verdadeiramente válida. É que uma coleção significativa não se constitui apenas à custa do livro de cheques. Não bastam as contas bancárias; somente pode formar uma verdadeira coleção quem tiver caráter, gosto e inteligência”, cita o anfitrião do podcast Only the Best.

Vista da galeria do Oriente Islâmico. Foto: © Pedro Pina

Mas, no ar fica a dúvida, “seria essa afirmação uma espécie de lisonja ou Gulbenkian era mesmo um colecionador especial?”, questiona Rui Ramos.

“Calouste Gulbenkian era um colecionador especial nesta área em particular e os seus conhecimentos jogavam naturalmente a seu favor”, responde João Carvalho Dias”. Mas, “os estudiosos eram naturalmente importantes para que confirmasse a sua intuição e assim o conduzissem a aquisições seguras”, sublinha.

A correspondência entre Calouste e Arthur Upham Pope confirma isso mesmo, “pois este académico norte-americano era um especialista na cultura persa e a sua obra Survey of Persian Art (1938-1939) marcou a época”. Também por isso, “Gulbenkian apoiava este académico, patrocinando os seus estudos no Irão”.

No entanto, acrescenta o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, “o colecionador teria sempre de ser cauteloso quando lhe parecia que estava a ser “conduzido”, preferindo a autonomia das suas decisões, ou seja, a última palavra seria sempre a sua”.

Esse misto de colaboração e autonomia, valeu a Gulbenkian a aquisição de tapetes extraordinários, como, por exemplo, a compra de “um exemplar de seda persa do século XVI, da Manufactura Imperial de Tabriz, que se diz ter vindo do grande mausoléu do Imã Reza, ou al-Rida, um descendente do profeta Maomé, em Mashhad, no norte do Irão, um dos maiores santuários do Islão xiita”, destaca Rui Ramos.

João Carvalho Dias, exalta a qualidade desse exemplar, definindo-o como “um tapete funerário de seda, que Arthur Upham Pope datava do reinado do xá safávida Tamaspe (1524-1576), um dos dois mais antigos da coleção”, acrescentando que foi adquirido por intermédio do citado especialista norte-americano, em 1939, ao antiquário e colecionador Ayoub Rabenou de Teerão, que deu plenos poderes ao irmão sediado em Paris para realizar a transação”.

Esse tapete, “era efetivamente propriedade de ambos e Pope negociava com os dois irmãos (que tinham interesses em Teerão e Paris) desde o início da década de 1920”, explica, referindo ainda que “os arquivos Gulbenkian conservam a interessante correspondência trocada sobre a compra, bem como a descrição do tapete e as propostas de tradução da inscrição, levadas a cabo por Pope e Mohammad Khan Qazvini, uma figura marcante da literatura iraniana, falecido em 1949”.

Tapete de padrão floral, Índia Foto: Carlos Azevedo

Chão “vestido” de arte

Ainda que saibamos que, por princípio, os tapetes sejam destinados ao chão, “ao pensar nestes exemplares preciosos e na sua exposição em museus, associamos a ideia de que estejam expostos em paredes ou de alguma forma protegidos”, admite Rui Ramos.

No caso dos tapetes da coleção, “alguma vez Gulbenkian os teve no chão, por exemplo, da sua casa da avenue de Iéna, em Paris, para serem pisados por ele e pela família?”, questiona a anfitrião do podcast Only the Best.
A pergunta tem ainda mais fundamento “face a uma carta de Arthur Pope, datada de 1933, em que este reflete sobre o que é a beleza de um tapete, dizendo que alguns são como a obra de um iluminador – numa referência aos manuscritos – e que ‘só quando pendurados numa parede se lhe pode fazer inteira justiça’”.

As fotografias e a documentação disponível sobre a localização dos tapetes na casa da Avenue d’Iéna “confirmam que estavam em todas as dependências, sobretudo no chão”, indica João Carvalho Dias.

Sabe-se mesmo que “os tapetes orientais ‘vestiam’ as salas, assim como as tapeçarias europeias, ou os fragmentos de têxteis otomanos”, acrescenta, “
existindo, de facto, uma significativa presença têxtil na coleção, e Gulbenkian dispunha-os para retirar um belíssimo efeito decorativo”.

No entanto, refere ainda o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, “a fragilidade e importância de alguns destes exemplares levava a que, em alguns casos, fossem encaixilhados, como aconteceu com o tapete de seda com o tema ‘combate de animais’, um dos mais importantes da coleção, adquirido ao Museu das Artes Decorativas de Berlim, em 1936. Julgo que, neste caso, a fragilidade do tapete do século XVI, executado em Caxã, Irão, justificava todos os cuidados de conservação e apresentação”.

Ecletismo e “rivalidade” artística

Além dos tapetes, “devemos falar também de outra arte têxtil, a das grandes tapeçarias europeias dos séculos XV e XVI, que rivalizaram então com a pintura como arte de desenho e de figuração para pendurar em paredes”, afirma Rui Ramos.

E, neste caso, “uma delas tem associada uma história de aquisição interessante. Falamos de uma tapeçaria flamenga do século XVI, em seda, ouro e prata, com a história de Vertumne et Pomone, um dos clássicos da mitologia romana”, especifica o historiador, e que “foi vendida a Gulbenkian por um museu, o Kunsthistorisches Museum, de Viena, que, em 1937, precisava de dinheiro para comprar um cálice do século XII”. No ar fica a dúvida face aos pormenores dessa história.

Tapeçaria «O Dançarino» Foto: Catarina Gomes Ferreira

“Esse caso trata-se efetivamente de uma proposta de venda por parte do Museu austríaco para aquisição de uma outra peça”, confirma João Carvalho Dias, “e essa negociação poderá hoje parecer estranha, sobretudo na Europa, já que nos EUA era mais comum”.

Todavia “a carta dirigida a Calouste Gulbenkian por Alfred Stix, diretor dos Kunsthistorischen Museums, em 24 de novembro de 1938, transmitia a autorização para que a tapeçaria Vertumno e Pomona (Bruxelas, 1548-1575), segundo cartão de Pieter Coecke van Aelst, artista flamengo, fosse vendida a Gulbenkian”, explica o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.

Nessa missiva referia-se: “tenho a comunicar-lhe a minha felicidade por esta solução permitir salvar, para o nosso país, o importante cálice do mosteiro de Wilten”, recorda Carvalho Dias. Assim, “Gulbenkian concretizou a compra da tapeçaria e emitiu um cheque no valor de mil libras a favor do Kunsthistorisches Museum para tornar possível a aquisição do cálice, tesouro nacional, o que veio a concretizar-se”.

Histórias à parte, esta e outras tapeçarias estão hoje expostas no Museu Gulbenkian, em Lisboa, “nomeadamente na sala das artes do mundo islâmico, onde estão patentes tapetes e têxteis do Irão, Índia mogol e Império otomano”, congratula-se João Carvalho Dias. Já na sala “das artes decorativas do Renascimento ao século XVIII, encontramos tapeçarias, paramentos (vestes litúrgicas), fragmentos de têxteis e móveis de assento europeus, deste período. Mas, os visitantes deverão estar atentos na visita ao Museu, uma vez que os têxteis estão um pouco por todo o lado”, aconselha.

Terminamos a sessão de hoje do podcast Only the Best, “referindo que daqui a quinze dias voltaremos para falar de outra dimensão de Calouste Gulbenkian como colecionador: o seu gosto pela arte do século XVIII e também da sua relação com um grande museu, a National Gallery em Londres”, revela Rui Ramos. Até lá.

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