Um padre católico português terá entregue à comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja uma lista com 12 nomes de colegas seus sobre os quais recaem ou recaíram suspeitas de abuso sexual, noticia o jornal Expresso na sua edição digital. Cerca de metade desses sacerdotes ainda se encontram no ativo.

“Dei todas as informações de que dispunha sobre colegas meus que foram alvo de suspeitas de pedofilia. Ao longo dos últimos anos consegui reunir testemunhos de vítimas mais sólidos, sobretudo sobre três padres“, disse o sacerdote em questão ao jornal Expresso. Segundo o semanário, o padre prestou à equipa liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht um depoimento de uma hora e entregou aos elementos da comissão vários documentos que, alegadamente, sustentam as denúncias.

Este padre “denunciante” há cerca de trinta anos que tem reunido provas e informações sobre colegas seus que terão abusado sexualmente de crianças e jovens — e também já fez denúncias às autoridades eclesiásticas e às autoridades civis, o que lhe tem valido críticas dentro da estrutura da Igreja.

Dois casos já foram investigados pelo MP — e acabaram arquivados

A notícia do Expresso refere que o sacerdote enviou à comissão independente 12 nomes de padres sobre os quais existem suspeitas de abuso e apresenta detalhes sobre três casos, dois dos quais já amplamente conhecidos — e até já investigados pelo Ministério Público, que determinou o seu arquivamento em 2013.

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Um dos casos agora noticiados e atribuídos ao padre denunciante tinha sido, aliás, revelado em primeira mão pelo próprio Expresso em 2012. Em causa está um padre que teria abusado sexualmente de um jovem de 15 anos no final da década de 1990 na paróquia da Cruz Quebrada, no concelho de Oeiras. A família fez, na altura, uma denúncia formal ao Patriarcado de Lisboa, mas não obteve qualquer resposta.

O caso acabou por se esfumar, sendo reavivado mais tarde, entre 2003 e 2004, quando o escândalo de pedofilia na Casa Pia trouxe o tema dos abusos de menores para o centro da agenda mediática. A provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, comunicou na altura à hierarquia da Igreja um conjunto de casos de abuso sexual de que tinha conhecimento (porque as famílias tinham recorrido a ela em pedido de auxílio) — e só nessa altura o Patriarcado de Lisboa, liderado por D. José Policarpo, agiu, nomeando um bispo para acompanhar o caso. Contudo, era tarde demais: o rapaz tinha-se suicidado, presumivelmente devido aos abusos de que foi alvo.

O caso voltou a ser tema em 2012, em consequência do escândalo de abusos no seminário do Fundão. Nessa altura, o Expresso trouxe a lume os detalhes sobre o caso e até entrevistou o pai da vítima.

A situação foi investigada pelo Ministério Público na sequência das denúncias de Catalina Pestana, que voltou a falar dos casos que havia denunciado à Igreja depois do escândalo do Fundão. As autoridades civis chegaram a ouvir uma outra vítima, um rapaz da mesma idade do jovem que se suicidara (e que até tinha precisado de apoio médico devido à penetração anal violenta), mas o caso acabou arquivado. De acordo com uma notícia do Público de abril de 2013, foi também impossível provar a relação entre o suicídio do rapaz e os abusos.

Nesse ano, o caso foi objeto de várias notícias — e o sacerdote em questão chegou mesmo a dizer ao Correio da Manhã que toda a polémica tinha origem no facto de haver quem lhe quisesse “estragar a vida“. O padre, na altura, foi enviado pelo Patriarcado de Lisboa para um santuário em Paris, onde ainda hoje exerce funções. O Observador sabe que este é um dos padres cujos nomes o coordenador da comissão independente, Pedro Strecht, entregou em mãos à Polícia Judiciária, por se tratar de um padre no ativo.

Comissão de abusos na Igreja de mãos atadas. Os encontros com a PJ nos bastidores, as dificuldades de investigação e a ausência da Igreja

Segundo o Expresso, o padre denunciante que agora entregou 12 nomes à comissão independente investigou tanto este padre da Cruz Quebrada como um outro padre com quem o primeiro teria um alegado “pacto de silêncio” sobre os abusos que ambos cometiam.

Trata-se de um sacerdote que terá abusado de vários jovens, sobretudo escuteiros, quando trabalhava na paróquia do Vimeiro, em Alcobaça. Os casos vieram a público quando os jovens começaram a falar sobre o que lhes aconteceu e quando os pais e chefes de escuteiros confrontaram o sacerdote. Já nessa altura, este padre que agora denunciou os casos à comissão independente seguia o caso de perto.

Segui-o de muito perto. E fiz a primeira queixa contra ele ao então patriarca José Policarpo, em 1997. Mas que de nada serviu“, disse o padre ao Expresso. Depois das denúncias, o padre foi transferido para uma paróquia na cidade de Lisboa, onde terá voltado a cometer abusos de menores. Também neste caso, o padre foi denunciado por Catalina Pestana e investigado pelo Ministério Público — e o caso foi arquivado em 2013.

Nesse ano, o Patriarcado de Lisboa abriu um processo canónico contra o padre, que só se resolveu muito recentemente, em 2020, com o abandono do sacerdócio por parte do padre. A história deste padre da região de Alcobaça também já tinha sido divulgada esta semana pela RTP, igualmente com base numa entrevista a um padre denunciante. Nem o Expresso nem a RTP identificaram o padre denunciante, pelo que, apesar de as semelhanças entre os depoimentos o sugerirem, é impossível dizer se se trata da mesma pessoa.

O Expresso dá ainda conta de um terceiro padre que o sacerdote denunciante entregou à comissão. Trata-se de um padre que morreu há dois anos e que até terá sido alvo de tentativas de extorsão por parte da família da vítima. Os pais do menor teriam exigido 10 mil euros ao padre em troca do seu silêncio.

Hierarquia da Igreja não denunciou casos às autoridades

Na edição desta sexta-feira, o jornal Expresso recorda também dois casos já conhecidos de ocultação de abusos sexuais de menores por parte de membros da hierarquia eclesiástica.

Um desses casos foi noticiado pelo Observador em 2019 e diz respeito ao atual bispo da Guarda, D. Manuel Felício, que terá tentado perturbar a investigação judicial ao escândalo do padre do seminário do Fundão. Na altura, a hierarquia da Igreja soube dos casos muito antes de a polícia ter sido alertada, o bispo mostrou-se irritado com as famílias por não terem falado com ele antes de irem à polícia e a própria PJ chegou a suspeitar de uma “manobra de branqueamento” do caso operada pela Igreja. Pode recordar aqui a reportagem do Observador sobre o caso.

O outro caso diz respeito a um padre da diocese de Setúbal que terá abusado sexualmente de cinco jovens em 2008. Os jovens queixaram-se ao então bispo de Setúbal, D. Gilberto Canavarro dos Reis, que à época instaurou um processo canónico, mas não comunicou o caso às autoridades, uma vez que as regras na altura não o previam. A investigação canónica permitiu que o padre continuasse em funções.