Enquanto a guerra decorre na Ucrânia, a indústria da moda é mais uma das que tenta sobreviver às dificuldades de um país invadido e em destruição. O setor é uma bandeira de identidade nacional, mas também um sinal de resistência e registo do contexto sócio-cultural, por isso se em alguns casos a nova realidade desafia a capacidade de adaptação, noutros alimenta a imaginação. Entre parcerias, novos ícones e uma embaixadora de topo, a moda ucraniana não pára.
Olena Zelenska, a melhor embaixadora
Olena Zelenska deu recentemente uma entrevista à Vogue norte-americana que foi acompanhada de uma série de fotografias nas quais a primeira-dama ucraniana usou peças de designers nacionais, como Bettter, Six, Hvoya, The Coat, Kachorovska, and Poustovit. No texto a moda também esteve presente de diversas formas.
“Nas duas conversas que tivémos em Kiev, Zelenska foi direta, digna, elegante, uma subtil promotora dos designers ucranianos. Num dia ela usou uma blusa de seda em tom cru com um laço de veludo preto à volta do pescoço e uma saia preta, o cabelo loiro num apanhado descontraído”, assim começou a autora, Rachel Donadio, a descrever o que vestiu a sua entrevistada. “No dia seguinte, foram jeans de perna larga, ténis grandes brancos com detalhes em azul e amarelo, uma referência à bandeira ucraniana e a um projeto de angariação de fundos da marca The Coat, o cabelo solto sobre os ombros e camisa de botões em tom de ferrugem”. Uma mistura de formalidade e descontração que a primeira dama tem conseguido manter, entre a solenidade do cargo, o contexto de guerra e a sua forma de apoio à indústria da moda nacional.
Contudo, deste artigo resultou o olhar de uma primeira-dama num país em guerra no século XXI, mas também uma grande polémica. Em causa estava uma aparente desconexão entre os retratos captados pela fotógrafa Annie Leibovitz num cenário de guerra, para uma revista de moda. “Estou a usar todas as oportunidades para falar sobre a Ucrânia e isto foi uma oportunidade gigante. Milhões leem a Vogue e falar diretamente para eles é o meu dever”, afirmou Zelenska em entrevista à BBC, respondendo à polémica. Disse não estar habituada a tanta atenção e que tem de trabalhar. “Até os soldados estão a dizer aos amigos para irem beber um café, ver um filme, apreciar a paz que têm. Nós estamos na linha da frente para dar essa paz. É um balanço delicado.”
Apenas uns dias antes deste trabalho da publicação do grupo Condé Nast ter sido divulgado online, Olena Zelenka fez uma visita de três dias aos Estados Unidos a convite da primeira-dama norte-americana Jill Biden. Foi recebida pelo casal presidencial na Casa Branca, discursou no Congresso e encontrou-se com o Secretário de Estado, Antony Blinken. Na bagagem a primeira-dama levou moda ucraniana, com roupas e acessórios recheados de significado, numa forma de diplomacia sofisticada e muito feminina que as mulheres da realeza costumam dominar. Tal como a sua presença, também o seu guarda-roupa passou uma mensagem de resistência e orgulho nacional.
Zelenska aterrou nos Estados Unidos com um vestido em verde tropa, com uma saia rodada e uma echarpe na mesma cor ao pescoço. “A primeira-dama é um símbolo da beleza das mulheres da Ucrânia que carregam grandes responsabilidades em tempo de guerra: as roupas lembram o uniforme militar que os nosso defensores e o nosso Presidente usam todos os dias — mas é elegante com uma echarpe a representar liberdade e confiança na nossa vitória”, disse a designer Lilia Litkovaska, fundadora da marca, à Vogue. A joia inspira-se no “rushnyk”, um pedaço de tecido bordado com símbolos tradicionais ucranianos. Como joias, a primeira-dama optou por usar ao peito uma pregadeira de uma parceria entre a marca de joalharia Guzema e a marca Gunia Project (que voltará a aparecer mais à frente). E um par de brincos, também da marca Guzema, que tem o simbolismo de ser o mesmo que usou na tomada de posse do marido como Presidente da Ucrânia, em 2019, conta a Town&Country.
Para se encontrar com o casal Biden na Casa Branca, Zelenska voltou a apostar num look Litkovaska. Desta vez num conjunto de saia e casaco em tom de amarelo suave com uns sapatos de salto alto azuis claros. Uma combinação de cores que é uma clara referência à bandeira ucraniana. No Congresso, onde foi recebida por Nancy Pelosi e depois discursou, Zelenska usou um fato preto da marca ucraniana AMG. O casaco contava com uma faixa em tecido branco com bordado tradicional ucraniano. “Ao longo da sua visita, Zelenska abraçou a roupa ucraniana numa demonstração de orgulho”, escreveu a Vogue.
Primeira-dama ucraniana recebida na Casa Branca com flores de Joe Biden e um abraço de Jill
Vale a pena referir outras duas figuras públicas de destaque na sociedade que também manifestaram o seu apoio à Ucrania através do uso de peças de moda. A atriz Amanda Seyfried usou um look da criadora ucraniana Elena Burenina nas fotografias que acompanham a recente entrevista que deu ao jornal Los Angeles Times, em junho. Já em março, apenas oito dias depois do início da guerra, a rainha Letizia de Espanha marcou presença num evento público a usar uma “vyshyvanka”, a tradicional blusa bordada ucraniana.
O galo da resistência chegou à joalharia
A passagem das forças militares russas na vila de Borodyanka, nos arredores de Kiev, deixou um rasto de destruição, contudo, quando entre os destroços de um prédio queimado se viu um armário de cozinha que se manteve pendurado na parede, intacto e com um galo de porcelana intocado, a curiosidade deu lugar à imaginação. E assim, o facto de um pote em forma de galo ter resistido à brutalidade de uma invasão russa fez com que o objeto se tornasse um símbolo silencioso da resistência ucraniana. Ficou conhecido como o Galo Vasylkiv e ganhou projeção internacional quando Boris Johnson e Volodymyr Zelensky visitaram o local e receberam um de presente.
Agora o mito faz eco na moda porque a marca de design com inspiração tradicional Gunia Project, fundada por Maria e Natasha, apresenta uma coleção de joias inspiradas no galo, como por exemplo brincos e um pendente. Parte do lucro (10%) da venda destas peças será doado para restaurar a escola secundária na vila de Kolychivka, na região de Chernihiv. Não é, no entanto, a primeira vez que a marca se inspira no famoso animal. Já o tinha usado para dar forma a uma vela, em cerâmica, cujo dinheiro da venda reverte para as forças armadas ucranianas e abrigos animais).
A história dos galos de porcelana que são um símbolo de resistência da Ucrânia
Para os cavalheiros com orgulho nacional
A Indposhiv, uma marca de alfaiataria e moda masculina, decidiu integrar a guerra nos seus produtos. Logo em março, poucas semanas depois do início da guerra, lançou a primeira série de três lenços da coleção “War in Ukraine” e lançou uma nova em junho. Estas peças são quase como uma banda desenhada, uma vez que cada lenço tem um estampado em ilustração que conta uma história da guerra.
A marca já anunciou na sua conta de Instagram que vai lançar uma coleção especial no Dia da Independência da Ucrânia, a 24 de agosto. “Acessórios patrióticos, e novas camisas bordadas padrões selecionados e variações de frases que deixarão claro que para todo o mundo que somos ucranianos e temos muito orgulho em quem somos”, escrevem. As imagens partilhadas na rede social mostram um pouco do que a marca reserva, como por exemplo, lapelas de blazers com espigas de milho bordadas ou palavras estampadas a formar um padrão de riscas. Assim também como tecidos de forro com estampados alusivos à guerra, camisas inspiradas nas tradicionais camisas ucranianas e novos lenços, mas desta vez com as cores da bandeira nacional.
“Support Ukrainian Fashion”
A Semana de Moda da Ucrânia (Ukrainian Fashion Week, UFW), que neste ano de 2022 celebra os seus 25 anos de existência, arrancou com a iniciativa “Support Ukrainian Fashion”. Depois de celebrarem a 50ª edição ainda em paz e normalidade, no início de fevereiro, a edição que se segue acontece já em circunstâncias bem diferentes, depois de a dia 24 desse mesmo mês ter começado uma guerra que ainda dura. Mas a UFW, que foi o primeiro evento de prêt-à-porter da Europa de leste, estava determinada a não falhar uma 51ª edição, por isso pediu ajuda às “colegas” internacionais na Europa e nos Estados Unidos e, pelo menos, nove responderam, permitindo que mais de 20 designers de moda ucranianos tenham oportunidade de mostrar o seu trabalho.
A iniciativa “Support Ukrainian Fashion” foi criada para apoiar os designers nacionais e a apresentação das suas criações em passerelles internacionais. A Budapest Central European Fashion Week, a Berlin Fashion Week, a Transilvania Fashion Festival, a Vienna Fashion Week, a MBFWMadrid, a Brussels Fashion Week e a Vegan Fashion Week (em Los Angeles) vão ser, segundo o site da UFW, os novos palcos destes criativos. Assim como a Malta Fashion Week, que foi a primeira experiência desta parceria e decorreu entre os dias 20 e 22 de julho, e foi a designer Nadya Dzyak a primeira ucraniana a mostrar a sua coleção nesta parceria internacional. A criativa apresentou a “Seasonless Collection 2022” (coleção sem estação para 2022). “Talvez seja a coleção mais difícil e mais importante da minha vida. Comecei a trabalhar nela em novembro do ano passado. Estávamos a confecionar esta coleção e depois veio 24 de fevereiro… e foi isso. No último dia, quando eu estava no nosso atelier, vi a minha equipa, éramos como uma família, durante muitos anos criámos coisas incríveis juntos. Contudo, prometi a mim própria, acontecesse o que acontecesse, temos de criar, acabar a coleção e ultrapassar a escuridão”, afirmou a designer, citada pelo Odessa Journal, antes de apresentar a sua coleção. A designer não é uma estreante no meio da moda internacional, uma vez que as suas criações já chegaram aos guarda-roupas de celebridades, como Kylie Minogue ou a atriz Jamie Chung. Esta nova coleção aposta numa feminilidade delicada com tecidos transparentes, muitos franzidos e folhos.
Outra semana de moda parceira da iniciativa ucraniana é a de Copenhaga, que aconteceu entre os dias 8 e 12 de agosto. As marcas ucranianas The Coat e TG Botanical foram incluídas no calendário de eventos da semana dinamarquesa com as propostas para o verão 2023. A The Coat lançou um filme digital de moda e a TG Botanicals apostou numa apresentação física.
Já em meados do passado mês de junho 12 designers ucranianos foram convidados a mostrar as suas criações na Pitti Uomo, a feira de referência internacional para moda masculina e acessórios, que tem lugar em Florença.
Um cenário da Ucrânia na Semana de Alta Costura
A criatividade ucraniana também chegou à Semana de Alta Costura de Paris, no início do passado mês de julho, porém através das artes plásticas no desfile da casa Dior. A diretora criativa da marca francesa inspirou-se na “árvore da vida”, um símbolo “de conexão entre culturas, mitologias e todas as formas de criação”, explica a Dior e as propostas para o próximo outono/inverno desfilaram num cenário criado sob a mesma inspiração pela artista plástica Olesia Trofymenko. A passerelle montada dentro do Museu Rodin, em Paris, foi envolvida por obras de arte que ocupavam as paredes do chão ao teto onde se podiam ver paisagens, a expressarem a ideia de eternidade da Natureza ucraniana, assim como flores inspiradas nos trajes tradicionais e bordados nacionais.A artista trouxe para uma das passerelle mais exclusivas da moda um pouco das heranças cultural e natural do seu país num tom de homenagem e apelo à prosperidade. “As árvores da vida e os ramos de flores dialogam uns com os outros numa emblemática simetria simbolizando o mundo feminino, a continuação da vida e um futuro luminoso”, explica a marca.