Se em Portugal o povo é sereno e os costumes brandos é porque o açúcar não dá energia, antes moleza. E talvez seja melhor assim, apesar de tudo, porque as insurreições, sobretudo neste clima pré-apocalíptico, são como o bacalhau à brás: um risco para a saúde pública. Ingerir açúcar em excesso também, reconheço, mas pelo menos não causa tanto incómodo aos transeuntes: não se fecham ruas, não se rebentam foguetes, não se entoam cânticos pejados de rimas pobres, com métrica defeituosa, nem se incomodam os nossos polícias, que assim podem continuar descansados, quero dizer especializados, no tipo de trabalho que mais apreciam, o administrativo.

A pastelaria francesa, mais delicodoce do que doce, mais natas batidas do que gemas, mais massa choux do que pontos de açúcar, não surte o mesmo efeito – daí o sucesso do fenómeno gilets jaunes. E se quisermos encontrar a razão de Itália estar a caminho do que leio ser o 68º governo dos últimos 76 anos, basta olhar para a mania transalpina de juntar licores a tudo quanto é bolo, tingindo-lhes o sabor, domando-lhe a meiguice. Aqui, felizmente, a doçaria tem um propósito bem definido. E cumpre-o. Ou, como diz um amigo meu: Portugal não é grande coisa, mas seria bem pior sem doce de ovos.

Vem isto a propósito da nova Casa Piriquita, na Avenida de Roma, em Lisboa. O bastião dos travesseiros no bastião dos aparelhos auditivos. Tem tudo para dar certo. Apesar de mais expostos a descompensações de glicemia, os idosos são um excelente público para negócios que apostam forte no açúcar – a perda progressiva de paladar faz com que procurem sabores cada vez mais intensos: mais salgado, mais umami e, acima de tudo, mais doce. Citius, altius, fortius.

A casa-filha não tem a pátina da casa-mãe. A fachada é uma reprodução da original, naquele amarelo forte que é mais canário que piriquita. O balcão segue a mesma linha. Não há senhas, não há algazarra, não cheira a travesseiros acabados de sair do forno, é um ambiente asséptico em que o mobiliário pode ser descrito como de catálogo. No caso das cadeiras, de fundo de catálogo.

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A Piriquita lisboeta é mais de levar do que de ficar. Tem apenas quatro mesas e um pequeno balcão encostado à janela. O serviço não é expedito, formam-se filas. Não tanto por falta de habilidade como por falta de mão-de-obra. A clientela é fina, mas não tem pressa. Demoram-se a admirar a oferta, deixam os netinhos escolher o lanche, pelo menos aqueles que não reclamam: “ohhh ‘vóóó, eu quero é um gelado!!!”

Avó e neto levantam-se para ir procurar o gelado para outra freguesia. Não literalmente, que há boas gelatarias nas redondezas. Chega a minha vez de pedir – a mesa é limpa nesse exato momento e espera, reluzente, pelas migalhas do travesseiro que deglutirei com sofreguidão. Se não é isto a serendipidade, o que será?

Avisam-me na caixa: “Cuidado que os travesseiros estão muito quentes.” Pergunto-me: mas eles existem de outra forma? Na minha conceção de mundo civilizado, o travesseiro só faz sentido muito quente. A ponto de provocar choque térmico, de parecer que vai queimar em primeiro grau, primeiro a língua, depois o palato, sem que chegue a concretizar a ameaça. Se há quem pense de maneira diferente, é a prova de que não estamos, mesmo neste país, livres da barbárie.

Ao contrário do prometido, o travesseiro está apenas morno. Não aquece nem arrefece. O recheio, a esta temperatura, não tem impacto na boca. A desilusão é aprofundada pela textura da massa que, ao contrário do esperado e exigido, não se desfaz em migalhas à primeira dentada. Pior: revela um ligeiro mas evidente travo a farinha.

Duas visitas posteriores confirmam o veredito: este travesseiro sabe a imitação. E não imita o da Piriquita – imita o das outras pastelarias onde se imita o da Piriquita com a garantia de que é tal e qual o genuíno, menos as filas.

As razões para o fenómeno podem ser várias, da preparação prévia à temperatura dos fornos, mas não me interessa tanto escalpelizá-las como poder usar a palavra escalpelizá-las. Até porque não tenho nada a ver com isso, nem sequer nasci em Niterói.

Antes de nunca mais voltar à Piriquita da Avenida de Roma, procuro despedir-me numa nota mais positiva. Observo a montra, ignorando os travesseiros de Nutella como quem ignora a guerra, a inflação, os abusos na igreja e a crise climática. É instinto de sobrevivência.

Peço uma joaninha, uma espécie de toucinho do céu em forma de bloco retangular. Uma criação contemporânea disfarçada de doce secular, de textura suave. Não me enche as medidas, mas enche-me de açúcar. E é tudo o que preciso: já ponderava começar uma insurreição.

George Gabriel nunca apresentou um programa de variedades. Considerem-no, antes, um artista de variedades: ilusionista amador, numismata, praticante de fascinação hipnótica. Também há quem lhe elogie as almôndegas. Sustenta os seus vícios com diversos ofícios, nenhum deles tão útil a terceiros como o de Experimentador Implacável.