Finalmente o calor a sério chegou. Torna-se difícil existir em Paredes de Coura com temperaturas altas, mas sem elas é quase como se faltasse uma peça essencial no festival. É em dias destes que o trânsito no rio empanca e os corpos se prostram na relva como camaleões nas árvores. “O ser humano a fazer a fotossíntese e a banhar-se no seu habitat natural”, diria David Attenborough ao ver tal imagem.
Dentro de portas, Sylvie Kreasch quis transpor o calor da praia fluvial do Taboão para o recinto. It’s getting too hot in this room, cantou em “Let it Burn” e de facto cada pedaço de sombra estava concorridíssimo às seis e meia da tarde. “Eu sei que está muito quente, mas vamos dançar” pediu na sua estreia em Portugal e alguns corpos junto ao palco começaram a mover-se languidamente.
Não foi por falta de tentativas, mas a verdade é que a atuação que a música belga nos apresentou foi apenas morna, tal como a de Márcia, meia hora antes no palco secundário. A energia viria a crescer já com Baleia Baleia Baleia a assumir as rédeas do cartaz. Manuel Molarinho e Ricardo Cabral não sabem fazer outra coisa que não provocar a catarse completa. Eles já tinham atuado na vila, nos concertos que antecederam o festival, mas com a redefinição de horários e a saída dos King Gizzard & the Lizard Wizard das contas, a organização ficou com um slot em branco. Chamaram-nos para a programação central e muito bem – haverá casamento mais certo do que Paredes de Coura e Baleia Baleia Baleia?
“Mentiria se não dissesse que é um sonho tocar aqui, pessoal”, confessou Manuel, que há um mês nem sequer imaginava que o estaria a fazer em dose dupla. Em semana de aniversário, levou a prenda da vida: “Fodasse, não há melhor, pois não?” Na sua postura de quem não se leva demasiado a sério e, não levando, faz da escrita e composição musical uma pequena delícia, os Baleia Baleia Baleia mantiveram a química com o público sempre acesa. “Só preciso de alguém que tenha paciência para ouvir esta merda”, canta Manuel em “Interdependência”, primeira faixa do concerto e já ele e Ricardo ficavam em tronco nu, pedindo que outros se juntassem a eles. A plateia despiu-se com eles, gritou com eles, fez mosh para eles num concerto em que os sorrisos nunca descolaram das caras. Para nós, este foi o verdadeiro tiro de partida deste quarto dia.
Final de tarde pintado a doçura poética de Arlo Parks
Com a boa disposição em alta, seguimos caminho para a relva do palco principal (outrora mais verde e vivaça do que por esta altura) para ouvir uma das grandes sensações da cena musical atual. Arlo Parks trouxe todas as suas dores de teenager para Paredes de Coura, com “Collapsed in Sunbeams”, álbum vencedor do Mercury Prize em 2021, a assumir-se como guião deste concerto.
“Obrigada por me receberem neste bonito festival”, agradeceu com a sua voz delicada, dançando com leveza, conduzindo a atuação entre as memórias da jovem Anaïs, de 15 anos, fechada no quarto a compor “Bluish”, sem saber se ia para a universidade ou não, e a Arlo Parks que hoje tem 22 anos e encanta um anfiteatro nas margens do rio Coura.
Neste final tarde soalheiro pediu-nos que a acompanhássemos no refrão de “Caroline”, deixou Tommy, o seu guitarrista, a solar em “Eugene”, mostrando que a sua pop, influenciada pelo R&B, também tem espaço para deixar entrar um pouquinho de rock, e convocou-nos para dançar em “Too Good” e “Hope”, uma “canção de alegria e esperança” que nos lembra que não estamos sozinhos no nosso sofrimento. Pelo meio ainda houve “Black Dogs”, tema que compôs para uma amiga e que é inspirado em “House of Cards”, dos Radiohead, e “Hurt”, com os seus belíssimos versos:
Charlie started seeing stars, so stuck on the new Jai Paul
Said my clothes are sticking to me, and I can’t quite see my walls
Started dreaming of a house with red carnations by the windows
Where he didn’t feel so small, so overwhelmed by all his flaws
Fechou com “Softly” e seria difícil encontrar melhor adjetivo para a doce estreia de Arlo Parks em Portugal, que apenas não foi perfeita por causa de uma falha momentânea de som e uma saída meia abrupta de cena.
Kelly Lee Owens, que é mais feroz do que doce, abalou este estado de espírito, assumindo sozinha o palco principal no meio das suas mesas de misturas e sintetizadores. Com o seu vestido verde, justo, desenhando dragões no corpo (ou seriam tires?), emprestou uma atmosfera sombria a Paredes de Coura através da sua eletrónica atmosférica, lembrando por vezes o trip-hop de Massive Attack – teria o vento sussurrado “dreaaaam oooon”?. O concerto acabaria por explodir na reta final e, de repente, ficamos com a impressão de que a hora de jantar se teria transformado num after party.
Das músicas do mundo de ARP Frique & Family ao mundo do rock de Ty Segall
Muitos estômagos não aguentaram este murro e abandonaram Kelly Lee Owens para comer qualquer coisa que os recompusesse e os preparasse para dois momentos altos: ARP Frique e Ty Segall. Começando pelo músico e produtor holandês, admirador profundo dos sintetizadores dos anos 70, da disco e dos ritmos africanos, não há como não olhar para a sua figura e não achar que ou saiu diretamente de uma loja vintage ou do Woodstock 69. O exotismo é tão assumido na sua persona como no espetáculo que apresenta. Na nossa opinião, não há nada de errado nisso, muito pelo contrário: ele trouxe a Paredes de Coura a real festa das músicas do mundo.
“Vamos tocar o máximo de canções que conseguirmos”, advertiu logo no início e, a partir daí, a tenda do palco secundário virou um club situado entre Cabo Verde e Nova Iorque. A sua família acompanhou-o no funaná, com o baixo gingão a comandar os corpos e os teclados psicadélicos a mandar feixes de luz diretamente para o terceiro olho que se abriu no meio da testa de todos quanto estavam na plateia. O espírito de Sun Ra, cremos, esteve no meio de nós.
No outro palco, Ty Segall reuniu em si toda a mestria do rock. Exímio no manejo das seis cordas, o californiano lembra antigos virtuosos, principalmente quando se põe curvado para trás, braço da guitarra puxado para cima e cabelos pendendo ao vento. Muito mais zen do que em anos anteriores – alguém se lembra do quão insano foi o concerto de 2014, com Segall a mandar-se para a plateia? – o músico, que lançou este ano o álbum “Hello Hi”, deu um concerto coeso, de fazer as delícias dos fãs.
Pouco falou, tendo dirigido as primeiras palavras à plateia já meia hora depois do primeiro acorde de “Cement”, “obrigado por nos receberem”. Passeou-se por “Hello Hi”, brincando com os compassos como Dave Brubeck brincara em Take Five, dedilhou melodias como se a sua guitarra fosse uma cítara, em “Looking at You” e martelou no baixo para dar brita em “Harmonizer”. Não faltaram também “Fanny Dog”, “Waxman”, um punhado de grandes canções de uma das mentes mais irreverentes, talentosas e criativas que a família do rock conheceu nas últimas décadas.
The Blaze: sensibilidade à flor da pele
A preparação do cenário antes do último concerto da noite notava uma logística complexa. Por aqui já pudemos antever a atenção que os primos Guillaume e Jonathan Alric dão ao detalhe. Para eles, a dança não tem que ser sempre explosiva. Melhor dizendo, a dança não tem que ser sempre exteriorizada de forma explosiva. A explosão pode ocorrer no nosso âmago e parece ser nesse campo, da sensibilidade que flui debaixo da epiderme, que os The Blaze se movem.
Fazem-no recorrendo a uma linguagem que tem tanto de musical como de cinematográfico, eles que já ganharam inúmeros prémios internacionais por causa de vídeos como os de “Virile” ou “Territory”. Cada pedaço de arte que lançam tem essas duas componentes, como se som e imagem não pudessem viver um sem o outro, tal como nós não podemos viver sem água, ar, terra e fogo. Daí que um espetáculo de The Blaze seja uma coreografia delicada de vários elementos que pedem que nos transcendamos a partir de dentro. Este sentimento, cantam em “Eyes”, chama-se amor e já sabemos que não há nada de mais transcendente no mundo do que a força do amor.
O espetáculo vive dos apurados jogos de luz e da coreografia de cinco ecrãs (muitas vezes transformados em três) que se recolhem e expandem, sempre com elegância. Há um bailado que se dá entre eles, como o da natureza a despontar na primavera e a mirrar sobre si mesma no inverno. Ao mesmo tempo que entram nesta dança, vão passando excertos de vídeos tão rotineiros como o de quatro rapazes na praia, um carro a pegar fogo, uma mulher a dançar na rua ou amigas a correr na floresta. É a vida a acontecer à nossa frente.
Musicalmente recorrem à repetição de versos simples como you dance so well em “Places” ou feel so loud em “Queens” para nos elevar uns metros acima do chão. O transe é alimentado pelos padrões rítmicos e melódicos progressivos que nos levam do sorriso às lágrimas, sem que contemos com isso e sempre com leveza e com uma sensação de pertença a algo maior. Os 60 minutos do espetáculo passaram suavemente e foram apenas quebrados por algumas demoras no reposicionamento dos ecrãs. Contudo, esse detalhe não beliscou a viagem bonita que ali se deu.
Quem está prestes a chegar ao seu cais de desembarque é o Vodafone Paredes de Coura. Hoje é o quinto e último dia do festival, já esgotado, cabendo aos Pixies coroar a 28ª edição. Nós por cá vamos também estar atentos a Princess Nokia, Perfume Genius e Slowthai.