O especialista em mobilidade e antigo vereador da Câmara Municipal de Lisboa Fernando Nunes da Silva rejeita a ideia de uma dicotomia entre utilizadores de meios suaves e automobilistas, defendendo uma complementaridade entre todos os transportes.

Em vésperas de se realizar no Porto o congresso Cidades que Caminham (quinta e sexta-feira) e a poucos dias de se assinalar a Semana Europeia da Mobilidade (16 a 22 de setembro), a agência Lusa falou com o antigo autarca de Lisboa sobre a evolução do sistema de transportes na capital.

Fernando Nunes da Silva, que foi vereador da Mobilidade e Transportes em Lisboa entre 2009 e 2013 (pelo movimento Cidadãos por Lisboa, na lista do PS), durante a gestão de António Costa, teceu duras críticas às medidas implementadas nos anos seguintes, em especial na gestão de Fernando Medina.

Desfizeram tudo aquilo que tinha sido feito no mandato anterior. Pararam com as zonas 30, com as zonas de emissão reduzidas e as restrições ficaram pelo caminho. Durante estes últimos oito anos aquilo que se fez foi destruir o que tinha sido feito”, indicou.

Questionado sobre o que correu mal, o também professor catedrático em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico evocou a dicotomia que se construiu entre os utilizadores de modos de transporte mais suaves/ativos, como as bicicletas e trotinetes e os automóveis, defendendo que todos devem funcionar em complementaridade.

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“Favorecer os meios de transporte ativos e a utilização de transporte coletivo é algo que deve ser feito de uma forma gradual e integrada e não de uma forma tribalista, em que de um lado estão os defensores das bicicletas e do outro estão os outros. Não é assim que as coisas se fazem numa democracia ou numa cidade com a complexidade de Lisboa”, ressalvou.

Nesse sentido, considerou, a tentativa de promover a utilização de bicicletas ou trotinetes tem dado azo a situações de “condescendência com infratores”.

É inadmissível que uma trotineta seja utilizada por duas pessoas a velocidades de 20 a 25 quilómetros/hora nos passeios. Isso é proibido. Esta complacência tem muito a ver com o combate ideológico. [Pensa-se que] o que é preciso é que a população ande toda de bicicleta e de trotinete e, portanto, [cria-se a ideia de que] não vamos criar nenhuns obstáculos a essa utilização, mesmo que isso seja contra a legislação e o regulamento que existe”, criticou.

Nunes da Silva considera que as políticas de mobilidade implementadas “demonstraram ter sido um fracasso”, sobretudo tendo em conta os indicadores referentes ao número da entrada de carros em Lisboa e da qualidade do ar.

“As pessoas que hoje se têm de deslocar passaram a fazê-lo mais de automóvel do que a pé, de bicicleta ou de transporte coletivo. A utilização da bicicleta é de 0,2%. Anteriormente conseguimos na Avenida da Liberdade respeitar a qualidade do ar, mas agora voltámos a ultrapassar os limites máximos”, argumentou.

A estratégia que tinha sido definida, com uma malha contínua de ciclovia entre o Parque das Nações e Algés, foi abandonada devido à “preocupação de aumentar o máximo possível os quilómetros de pistas cicláveis”. A título de exemplo, recordou o polémico caso da ciclovia da Avenida Almirante Reis para dizer que o resultado final da obra acabou por ser diferente daquele que tinha sido inicialmente projetado.

A proposta que nós tínhamos é que só era necessário fazer uma pista ciclável no sentido ascendente, que é quando os ciclistas têm maior dificuldade e andam mais devagar e precisam de ser protegidos. No sentido descendente poderia ter-se feito aquilo que todas as grandes capitais europeias têm vindo a fazer, como Paris e Londres, que com o alargamento de um metro, metro e meio dos corredores de autocarros seria possível haver uma convivência entre os ciclistas e os transportes públicos”, explicou.

Nunes da Silva discorda também da escolha de uma linha circular para o Metro de Lisboa, gerido pelo Estado, e entende que o município deveria ter tido uma posição mais forte. Este tipo de linha, comentou, foi abandonado na Europa ou ficou limitado a percursos de periferia.

O prolongamento da linha Vermelha, por seu turno, é descrito pelo especialista como um “atentado patrimonial”, por prever uma passagem pelo Jardim da Parada: “É absolutamente inconcebível como se deitou fora décadas de estudo que existiam no Metropolitano de Lisboa e que já vinham da altura do doutor Jorge Sampaio [presidente da Câmara Municipal de Lisboa entre 1990 e 1995], para se construir uma linha mais cara e com a destruição de um jardim que é essencial e emblemático no bairro de Campo de Ourique.”

Dependência do carro “começa com problemas graves de urbanismo”, diz professor

O professor emérito da Universidade de Lisboa José Manuel Viegas considera que a “dependência excessiva do automóvel individual”, que afeta as cidades portuguesas “sem exceção”, começa “com problemas graves de urbanismo”, que também dificultam o transporte coletivo.

Não fomos capazes de criar condições para que outros tipos de oferta de mobilidade pudessem ser suficientemente apelativas. Isto começa com problemas graves de urbanismo”, disse à Lusa, em entrevista telefónica, o também presidente da empresa de consultoria de transportes TIS.

Segundo José Manuel Viegas, que falava em antecipação ao congresso Cidades que Caminham, que decorre no Porto na quinta e sexta-feira, o problema remonta à lei das finanças locais, em que houve, “durante vários anos, pela fórmula que era praticada, incentivos ao aumento do perímetro urbano”, com a consequente “diminuição de densidade”.

“Ao ir acrescentando pessoas, se eu as acrescentasse com um perímetro maior, o fundo de equilíbrio financeiro dava mais dinheiro às câmaras que tivessem esse aumento”, explicou o antigo professor Catedrático de Transportes no Instituto Superior Técnico (IST).