Dois dias depois de ter anunciado a antecipação em outubro de parte do aumento das pensões de 2023, o primeiro-ministro continua a ter de explicar a medida criticada pela oposição e que até o PS deixou desconfortável. Garante que a não aplicação da atualização automática em 2023 não significa um corte nas pensões, mas assume que o Governo quis mesmo pôr um travão a um aumento permanente determinado por uma inflação “anómala” com peso sobre o futuro da Segurança Social. E mais, indica que a solução encontrada agora pode não ser tiro único: “Cá estaremos daqui a um ano para, em função do que for a realidade da inflação, podermos fixar o aumento de 2024.”
A lei determina atualizações automáticas com base no crescimento económico e na inflação, mas o Governo vai, em vez disso, fixar um valor, tendo em conta a realidade do país, admitindo que para o ano possa ter de fazer o mesmo. Daqui a um ano, o Governo vai, “em função do que for a realidade de inflação e da economia do país, fixar o aumento para 2024”, disse António Costa. Por agora, o que propõe à Assembleia da República é uma “regra específica para 2023”, onde será fixado “o montante específico a vigorar em 2023″, explicou o primeiro-ministro em Faro esta quarta-feira, insistindo que a proposta do Governo “não faz nenhuma alteração da fórmula [de cálculo] para o futuro”.
Costa não avança com uma alteração definitiva da fórmula de cálculo, embora contorne a sua aplicação, justificando-o com uma inflação que teme que se mantenha descontrolada. “Alguém me sabe dizer se a guerra termina ou continua depois de [20]24? E o que vai acontecer à inflação de certeza durante [20]24? As previsões todas indicam redução, mas vamos ter ou, tal como aconteceu este ano, a realidade foi superando as previsões?”, questionou o primeiro-ministro.
Mantendo a fórmula e mantendo-se o contexto, daqui a um ano poderá voltar a ter de recorrer a legislação específica se pretender conter um aumento das pensões em linha com uma inflação acima do previsto. “O aumento de 2024 será definido daqui a um ano em função do que for a evolução da inflação ao longo de 2023”. Foi o mesmo que disse em junho passado, quando à CNN Portugal garantiu que para o ano haveria “um aumento histórico do valor das pensões”, detalhando que isso aconteceria “pela conjugação de se registar este ano um valor anormalmente alto do crescimento, muito por efeito comparativo do ano passado e um aumento histórico também muito significativo da taxa de inflação”, ou seja, em linha com os indicadores que estão na lei. Acabou por encontrar esta fórmula de dar parte do aumento já, impedindo que fosse incorporado nas pensões em definitivo.
Agora, já depois de contornar a fórmula que consta na lei, Costa explica que o país está “a viver uma inflação extraordinária, anómala, atípica” e “transformar esta inflação deste ano num impacto permanente na Segurança Social poria em cauda a sustentabilidade” do sistema.
E reafirma a ideia de que em “2023 todos receberão o que receberiam se fosse aplicada a fórmula da lei”. Em rigor, será entre outubro de 2022 e 2023 que essa situação se verificará, já que parte do aumento (meia pensão) será entregue aos pensionistas já este ano, em outubro. A outra parte do aumento é que será distribuída no próximo ano, em 14 vezes. Um mecanismo que faz com que o aumento não seja incorporado pela base da pensão, o que implica que a partir de 2024 os aumentos sejam inferiores aos previstos se a lei da atualização automática fosse aplicada — o que tem sido raro, como o Observador explica aqui.
Sobre 2024, António Costa não quer falar agora. Apenas garante que nessa altura “ninguém vai perder rendimentos em relação a 2023, a pensão nunca vai ser inferior à de 2023“, embora a queixa que está a atravessar os críticos desta sua opção não seja esse o ponto que aponte, mas sim para a perda de rendimentos em relação à expectativa deixada pela lei da atualização automática. A lei determina que o aumento anual das pensões é feito com base na média de crescimento anual do PIB nos últimos dois anos e na variação média da inflação nos últimos 12 meses.
Sobre isto, Costa remete para a necessidade de um “contrato de confiança” entre gerações, que “respeite o que têm hoje pensões a pagamento” e os que pretendem ter no futuro. Daí a referência que faz à sustentabilidade da Segurança Social.
Tiro a Passos: “Os pensionistas percebem bem o que é perder pensões”
À cabeça dos argumentos para defender uma medida polémica que está a ter dificuldades de defesa até dentro do seu partido, Costa coloca, assim, a questão da sustentabilidade da Segurança Social, mas também outras duas linhas de raciocínio. A primeira é que não há um corte de pensões e que isso aconteceu mas com outros governos — remetendo para Passos Coelho: “Os pensionistas percebem bem o que é perder pensões: é, como já aconteceu no passado, cortar as pensões que as pessoas têm (…) e o que estamos a fazer não tem nada a ver com esse cenário, é um suplemento extraordinário”.
A outra linha de argumentação é que “nos últimos seis anos também não foi aplicada a fórmula, quando havia inflações tão baixas que não permitiriam qualquer tipo de atualização da pensão”. Aqui ainda embandeira com uma medida dos seus governos, o complemento extraordinário que garantiu aumentos de pelo menos dez euros nas pensões mais baixas.”A inflação estava tão baixa que se não fizéssemos esse aumento extraordinário, as pensões mais baixas não teriam aumento”. A medida foi aplicada desde o Orçamento de 2016 e manteve-se até ao último, mas o ministro das Finanças já fez saber que não se repetirá para o ano.