Em “Restos do Vento”, o novo filme de Tiago Guedes (“Coisa Ruim”, “A Herdade”), passado numa vila do interior do país, há uma constante visual no cenário: as enormes e inestéticas torres eólicas que dominam o horizonte, descaracterizam a paisagem e sublinham a omnipresença do vento. Elas funcionam também como um símbolo da modernidade tecnológica, um sinal do presente inserido numa história onde o passado continua a manifestar-se teimosamente, através de rituais de iniciação e de tradições ancestrais que se julgavam extintos, mas que continuam vivos, tal como os impulsos mais atávicos.

A história do filme começa em 1995, quando os rapazes da vila em que ela decorre, disfarçados com capuzes e empunhando cordas e chibatas, cumprem um ritual anual de origem pagã e andam pelas ruas a fazer barulho, a assustar as pessoas e sobretudo a perseguir as raparigas, depois de terem andado a beber no café local e sido humilhados e picados pelo seu boçal dono. Na sequência do ataque a uma delas, que quase se transforma numa violação coletiva, um dos rapazes, Laureano, é responsabilizado pelo ato do grupo, brutalmente espancado pelos outros e deixado no meio da rua.

[Veja o “trailer” de “Restos do Vento”:]

Passaram 30 anos e o ritual caiu entretanto em desuso. Os rapazes do grupo cresceram, casaram-se, têm famílias e empregos. Mas não Laureano (Albano Jerónimo), que ficou com mazelas permanentes da agressão coletiva e é considerado o “maluquinho” da vila. Vive numa casa isolada e degradada, anda sempre rodeado por uma matilha de cães, os rapazes temem-no, troçam dele e apedrejam-no de longe. A única pessoa que se preocupa com ele é Judite (Isabel Abreu), a protagonista do incidente de há três décadas atrás. Numa noite de festa, o filho de Samuel (Nuno Lopes), o mentor do grupo de rapazes, hoje um industrial, é descoberto morto, com os cães de Laureano a abocanhá-lo, o que leva as pessoas a culpar o dono. Até que a autópsia revela que o rapaz foi esfaqueado.  

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[Veja uma entrevista com Tiago Guedes:]

Escrito pelo realizador e por Tiago Rodrigues, “Restos do Vento” é em parte um policial passado no mundo rural, em parte um retrato de um país interior no qual, apesar das mudanças sociais e de costumes e das evidências do progresso, há um passado longínquo que continua bem presente e a condicionar mentalidades e influenciar comportamentos. O filme capta e transmite de forma convincente a atmosfera geral de uma pequena vila onde toda a gente se conhece e há relações muito próximas entre as pessoas, de parentesco, amizade, vizinhança ou profissionais, e acontecimentos antigos que unem algumas delas, usando-a para estabelecer o ambiente de tensão, desconforto e incerteza exigido pela intriga.

[Veja uma cena do filme:]

Apesar da identidade do assassino se adivinhar facilmente, o que anula o efeito de surpresa e seu respetivo impacto dramático na altura de ser revelada, o filme mesmo assim continua a manter o interesse, já que a resolução do crime é secundária em relação às situações que vai criar entre as personagens. E aqui entram em cena não apenas o chamado do sangue e as lealdades familiares, que se vão sobrepor ao sentido do dever, à amizade e à compaixão, como também o poder e a segurança do grupo, e as pulsões profundas que nunca se extinguiram. E que pedem, no passado como hoje, uma vítima expiatória para que tudo fique resolvido e apaziguado.

É difícil e ingrato destacar interpretações em “Restos do Vento”, já que a história é propícia a um funcionamento corretamente coeso do elenco, sem ninguém a sobressair em particular (embora Isabel Abreu no papel de Judite, e a jovem Sofia Vasconcelos na filha adolescente desta, a esquiva Salomé, mereçam uma nota, aquela pela verosimilhança que mantém na personagem mesmo quando dá uma violenta guinada no seu comportamento, esta por tudo o que sugere só pelas expressões e pelo modo de estar). Uma palavra final para a qualidade irregular do som. Há alturas no filme em que não conseguimos perceber o que os atores dizem, e o vento do título é mais audível do que eles.