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O Campo Pequeno recebeu o ritual habitual dos Arcade Fire perante os seus fiéis seguidores — e nunca poderia ter corrido mal

Este artigo tem mais de 2 anos

Antes de começar, a vitória na primeira de duas noites ao vivo em Lisboa estava garantida. Uma fórmula segura, uma multidão rendida, mas, ainda assim, uma banda que não sabe render-se à preguiça.

Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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Win Butler, o vocalista que tem sido protagonista de outras matérias fora de palco, mas que ali voltou a ser apenas o líder dos Arcade Fire

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Win Butler, o vocalista que tem sido protagonista de outras matérias fora de palco, mas que ali voltou a ser apenas o líder dos Arcade Fire

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

As teclas, coloridas, estão a tocar sozinhas. O piano de cauda, feito de material em PVC transparente, indica que existe um pequeno palco secundário, colocado no meio da plateia, onde o público aguarda de pé pela entrada dos Arcade Fire ao som de uma modinha tocada ao piano em estilo vaudeville. O instrumento está iluminado por uma luz branca e, por cima, encontra-se uma bola grande de espelhos, ainda na penumbra. As galerias e as bancadas da Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, encontram-se igualmente compostas.

Antes, estiveram a tocar os haitianos Boukman Eksperyans, que substituíram Feist depois de esta se demarcar da banda canadiana devido às acusações de abusos sexuais sobre o vocalista Win Butler, que vieram a lume no início de setembro. Os Boukman Eksperyans foram buscar o nome tanto ao sacerdote de voudu Dutty Boukman, considerado o agente catalisador da revolta dos escravos que marcou o início da revolução e independência do território do jugo dos franceses, como à palavra “experiência” dita em crioulo. E isto é importante porque, no final do concerto dos Arcade Fire, elementos dos Boukman Eksperyans juntam-se e participam no tema “Haiti”, do primeiro disco – fulgurante, novo – da banda canadiana, Funeral. O vocalista, Theodore Lolo Beaubrun, empunhará inclusive a bandeira do Haiti. O país marca, na sua origem, o início das revoltas e afirmação negras a nível mundial.

Junto à boca do palco principal está colocada uma pequena caixa preta, parte da parafernália técnica, que tem escrito a branco “WE”, como se fosse um ato de arte gráfica improvisado de uma banda amadora que está a dar os primeiros passos nas atuações ao vivo. WE é o nome do último álbum dos Arcade Fire, de que já falámos aqui no Observador tratar-se de um disco que marca o regresso da banda a ser de novo ela própria na forma como caminha para o novo. E isto poderia definir em muito o trabalho dos Arcade Fire: pode falar dos assuntos mais sérios, dos temas mais deprimidos – e há muitos –, mas a cura, ou pelo menos a sobrevivência, reside na forma como se caminha. E a forma como se caminha é a do percurso rumo à catarse.

A catarse tem muito que se lhe diga neste concerto. Estamos perante um público que conhece a fórmula da banda e está já em êxtase, mesmo antes de o concerto começar, como um toxicodependente à espera da sua ansiada dose. O espectáculo não tem como correr mal, o público irá pular e manter os braços apontados para o palco e cantar os refrões todos. Nem o som, que não esteve particularmente bom — o baixo por vezes demasiado distorcido — conseguiu ser incomodativo.

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Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Regressemos à catarse e ao facto de Win Butler entrar em palco vestido de preto, com um colete – não amarelo – mas vermelho por cima de uma T-shirt da digressão da banda e que veremos ter escrito à frente WE e, curiosamente, nas costas “ME”, como se a letra “W” tivesse sofrido uma inflexão. “Nós” é também uma forma de “eu”, eu sozinho e deprimido supero-me a pensar em nós, em tu e eu, no todo, na comunidade, no fazer caminho em conjunto.

Como nos concertos que têm dado na Europa, Madrid, Milão, a primeira canção que os Arcade Fire tocam é “Age of Anxiety I”, de WE. O jogo de luzes simula vários arcos de volta perfeita, feitos de pedra, a dar teto ao palco. Como se fossem uma nave espacial feita em computação, os arcos começam a abrir-se e a dar visibilidade ao espaço, cheio de estrelas. Até que o negro começa a dar lugar ao roxo e assim se chega à retina que faz a capa do álbum.

Cola-se logo “Ready to Start”, de The Suburbs, sem tempo para respirar, e as pessoas nas bancadas põem-se também de pé para dançar. Há sabres de luz a rasgar o recinto. “Businessmen drink my blood/ Like the kids in art school said they would” (“Homens de negócios sugam-me o sangue/ Como os miúdos da escola de arte disseram que fariam”), sabemos da hipocrisia do mundo, mas continuamos.

Em “The Suburbs”, cantam “If I could have it back/ All the time that we wasted/ I’d only waste it again” (“Se pudesse voltar atrás/ Todo o tempo que desperdiçámos/ Apenas o desperdiçaria outra vez”). Régine Chassagne salta então do palco e dirige-se, por um corredor assegurado por seguranças, para o palco no meio do público, que tem o piano. De mini-saia rodada, de toule preto, e um corpete metalizado, numa versão punk, Chassagne sobe para cima do piano, dança e canta “It’s Never Over (Hey Orpheus)”, do álbum Reflektor, cujo tema de nome homónino ao álbum virão a cantar duas músicas mais à frente, depois de “My Body Is a Cage” e Afterlife.

Concerto da banda Arcade Fire, no Campo Pequeno. Lisboa, 22 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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É com Afterlife que nos apercebemos do excesso, de que a comunhão entre a banda e o público – chamemos-lhe festa – está apenas presa pelo fio da fórmula musical tornada dispositivo emocional: os cânticos “uuuh uuuuh uuuh” ou “oooooh oooooh” presentes nas canções reduzem-nas a mantras, a carcaças destituídas de qualquer sentido. A emoção que resta podia ser a de um jogo de futebol. Só que aqui dançou-se mais. Até na rua, acabado o concerto, as pessoas continuavam a entoar “uuuuuh uuuuuh”, “oooooh oooooh”.

Depois de “The Lightning I” e “II”, com “Rebellion (Lies)” começou o descontrolo com os “uuuuuh uuuuuh”, “Every time you close your eyes// People try and hide the night/ Underneath the covers” (“De todas as vezes que fechas os olhos// As pessoas tentam esconder a noite/ Debaixo das mantas”). Até as cordas de orquestra de “No Cars Go” (de Neon Bible), que Win Butler diz para o microfone ter sido uma das primeiras que ele e a mulher, Régine Chassagne, compuseram juntos, aqui apenas representadas por um violino, são substituídas pelos cânticos monossilábicos do público.

Já o bulício em palco é uma constante, visto que os oito músicos em palco são muitos deles multi-instrumentistas. O ambiente é de festa constante, muitas luzes e por isso mesmo o concerto acaba com “Everything Now”. Para encore, “End of the Empire I-III” e “IV (Sagitarius A*)”, de WE, e, por fim, “Wake Up” (de Funeral), “ooooooh ooooooh ooooh ooooooh”, podia ser a banda sonora de um anúncio publicitário. E, ao som dos cânticos, Win Butler de micro na mão e Ricard Reed Parry a bater duas baquetas saem do recinto, pela porta lateral à esquerda do palco, a mesma por onde entraram, sempre em festa, como se fossem uma banda de coreto em procissão ou os flautistas de Hamelin, seguidos pela multidão.

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