É um meme recorrente por essa internet fora: o da pessoa que, depois de um dia difícil de azáfama, se senta em frente ao televisor a relaxar com um copo de vinho, uma vela de alfazema… e um documentário horrífico de true crime, de preferência sobre um serial killer. As plataformas de streaming, com a Netflix à cabeça, tornaram os crimes mais gráficos e desumanos alguma vez vistos em conteúdos mainstream — quase fazendo as vezes das comédias românticas naquele purgatório dos comandos, depois das crianças deitadas e da loiça na máquina, que é o “o que é que te apetece ver hoje, ‘mor?”. “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story” transforma um desses documentários, que partilha com a série a chancela Netflix, numa obra de ficção absolutamente colada aos factos reais. O resultado? Dez episódios de uma hora que merecem muito o seu dístico de “Maiores de 18” reservado a conteúdos chocantes.
Jeffrey Dahmer foi um serial killer de Milwaukee que assassinou brutalmente 17 homens e rapazes entre 1978 e 1991, recorrendo repetidamente a violação, necrofilia e canibalismo. E se a versão documental nos deixa a braços com relatos e imagens avulsas, a série criada por Ryan Murphy (o mesmo de “Glee”, “American Crime Story” ou “American Horror Story”, que aqui se reúne com o guionista de longa data Ian Brennan) vai mais longe da maneira como dá a volta à barriga (não recomendo ver ao jantar, com o pratinho de lasanha no colo), uma vez que recria situações que até então só viviam nas descrições. Os momentos com as vítimas são tensos, longos (praticamente em tempo real), sujos e não se escusam ao chocante. É uma obra bem realizada, escrita com eficácia e soberbamente bem interpretada, mas que está a causar burburinho por muitos espectadores não conseguirem passar do primeiro episódio. Esta vossa escriba, que teve de assistir às 10 horas em tempo record para completar este texto, espera que o seu editor esteja pronto para desembolsar o valor correspondente para a terapia. Ou, pelo menos, uns medicamentos para insónias.
[o trailer de “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story”:]
https://www.youtube.com/watch?v=NVHHs-xllqo
A carreira do showrunner Ryan Murphy é tão fervilhante como inconsistente, mas tem aqui uma das suas melhores obras até agora. É que Murphy é especialista em mover-se no terreno do exagero e da estética iconista, que acabam por servir bem esta história. Especialista em chocar, tem aqui um terreno fértil que sabe lavrar com eficácia. Mas há que, no mínimo, dividir esse mérito com os atores: o protagonista Evan Peters (“American Horror Story”; “Mare Of Easttown”; os novos X-Men) executa um trabalho de excelência que o colocará no radar de todos os prémios; Richard Jenkins (“The Shape Of Water”; “Olive Kitteridge”) faz parecer fácil desempenhar a espinhosa e contraditória figura do pai do assassino; e Niecy Nash, geralmente conhecida por comédias como “Never Have I Ever” ou “Reno 911”, tem aqui a oportunidade de mostrar o seu talento para o drama, no papel de uma vizinha repetidamente ignorada pela polícia.
Essa vizinha, de seu nome Glenda Cleveland, é, aliás, uma das personagens de maior relevo na série. É que uma das características diferenciadoras e meritórias de “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story” é a de ser mais sobre as vítimas (diretas e indiretas) e menos sobre a glorificação do criminoso. Não é à toa que a palavra “monster” faz parte do título e nem é por acaso que o primeiro episódio mostra o momento da sua detenção. Esta opção vai em contracorrente com a imagem de figura pop da qual Dahmer gracejou quando foi preso, com lançamentos de bandas desenhadas sobre si ou a moda do seu look ser usado como disfarce de Halloween. Aqui, Murphy está mais interessado no impacto que o seu comportamento teve nas suas vítimas, nas suas famílias e na vizinhança (o prédio foi demolido, como modo de camuflar os horrores que ali se passaram). É também uma série sobre as graves fendas no sistema de justiça norte-americano (a polícia foi alertada várias vezes por uma Glenda muito desconfiada) e sobre os preconceitos que levaram à impunidade do serial killer durante anos a fio. Por um lado, a menor importância dada às vítimas devido à sua raça (muitos eram negros ou asiáticos); por outro, a desconfiança para com a homossexualidade que, entre outras coisas, afastou a polícia de uma investigação séria por acharem que o desvio daquele homem claramente bizarro era mesmo ser gay.
Claro que “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story” passa também muito tempo a explicar-nos a ser humano, da sua infância conturbada à sua inexistente estrutura familiar. O supracitado pai é, aliás, uma das peças mais interessantes da série e a cena do primeiro episódio no qual a polícia lhe detalha os crimes inenarráveis do filho é forte e distinta de outras obras do género. Mas em momento algum se faz com que o espectador tenha sequer a tentação da empatia, um mecanismo tão na moda em tantas outras séries deste género.
Também de realçar a ótima banda sonora, com temas originais de Nick Cave e Warren Ellis (também ele membro dos Bad Seeds). Mas igualmente com um interessante contraste de canções delicodoces, que contradizem com mestria com o tema geral da série, como “Stumblin In” de Chris Norman e Suzi Quatro, “Please Don’t Go” pelos KC and the Sunshine Band ou “All Around The World” de Lisa Stansfield.
Em conclusão, “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story” é uma série pesada, sem receio em carregar no pedal do gore, difícil de mastigar e digerir — mas apenas porque assume que o peso do tema não poderia ser gerido de outra maneira. 10 episódios é demasiado (6 a 8 chegariam perfeitamente), até porque os horrores em repetição adormecem sempre as emoções do espectador. Mesmo assim, é uma série que nunca se esquece de onde está o seu coração. E, felizmente, não é dentro do congelador de um canibal no Milwaukee.