Costumamos atribuir rótulos aos músicos e apesar da variedade de rótulos possível, acabamos sempre por recorrer aos mesmos: Beyoncé é uma rainha, atletas como Harry Styles que trepam as tabelas de vendas sem introduzirem mudanças na cultura não passam do mero estatuto de super-estrela; quando Little Simz apareceu dizia-se que era uma promessa – hoje será talvez uma princesa; os Idles são punk, os Sault são experimentais – e Angel Olsen, aos 35 anos de idade, é um dogma.
Tal como Tomberlin, a menina que abriu o concerto de Angel Olsen ontem no Capitólio (Lisboa), e que editou este ano i don’t know who needs to hear this…, começou por ser rotulada como “baladeira folk”: naqueles primeiros EPs, há mais de uma década, era uma rapariga com uma guitarra acústica munida de uma voz extraordinária, mas remetida ainda à música acústica confessional.
Isto não era mau (antes pelo contrário, era bastas vezes muito bom), mas estava longe de nos fazer adivinhar o que viria a acontecer de 2014 para a frente: a partir de Burn Your Fire For No Witness (de, lá está, 2014) e até ao mais recente Big Time (deste ano), Olsen nunca mais parou de experimentar, combinar géneros, brincar com a estrutura das canções, descobrir o que podia fazer com a sua voz.
O pináculo de todas estas mudanças terá sido, talvez, esta segunda-feira à noite, em palco, com banda – e a palavra palco é importante, porque no fim acabámos a perguntar-nos como é possível que Olsen consiga trazer unidade a temas de tantos discos diferentes, tão opostos em termos de ambiente, da instrumentação original, de tempo? Nenhuma canção fica intacta: o que vivia de sintetizadores agora brilha graças a cordas; o que era lento agora ascende onde não se esperava; cada arranjo muda, a entrega vocal não é um decalque dos discos e nós ficamos naquela zona em que sentimos conforto ao reconhecer uma canção que adoramos mas em que de repente damos por nós a pensar “Espera aí, isto não era assim, o que raio vai acontecer a seguir?”.
Um bom exemplo do estatuto que Angel Olsen alcançou – e atenção que isto pode vir a ser um spoiler – chega ao quinto tema da noite: ela diz que vai tocar uma canção que compôs de manhã, diz aos músicos que se não se sentirem à vontade ela pode tocar sozinha, mas que são profissionais e por isso deviam tentar tocar a canção que não conhecem, diz que é um risco, mas que não arriscar “is for losers”; e quando toda a gente está de pé atrás a pensar o que vai sair dali, a banda inteira ataca “Shut Up Kiss Me”, talvez a canção mais popular de Angel Olsen, um indie-rock diabólico que a tornou, da noite para o dia, uma semi-estrela indie emergente com direito a capas de revista.
Olsen já por várias vezes disse que por ela já não tocava “Shut Up Kiss Me”, mas a importância da canção (e do disco a que pertence, My Woman, de 2016) não pode ser diminuída: foi aí que Olsen deixou de ser baladeira, aprendeu a rockar, a usar a sua voz no limite do drama, a não ter vergonha de fazer melodias, a trazer ruído para dentro das suas canções, a enchê-las de arranjos, a experimentar com sintetizadores – enfim, foi aí que ela largou as amarras da folk e descobriu como tornar cada canção não só única como imensa: antes ela era uma voz grande num instrumental fininho, a partir daí passou a ser a conjuradora das marés que sobem e descem a canção.
O disco seguinte, All Mirrors (2019), era ainda mais radical, repleto de sintetizadores e cordas opulentas, majestáticas – as canções pareciam perder o centro e seguir o drama da voz de Olsen, como se a cada segundo não soubessem onde a canção ia parar. Talvez pela radicalidade desta sequência de discos, Big Time, o álbum deste ano, viu alguns fãs torcerem-lhe o nariz: Big Time não é bem um regresso à folk, antes uma viagem à country sofrida e mais rica – o equivalente para o século XXI ao que Dylan fez quando, no topo da sua popularidade, e após o seu famoso acidente de mota, se retirou para Woodstock e, quando regressou, largou a eletricidade e lançou John Wesley Harding e Nashville Skyline – este último, uma incursão pela country em que Dylan mudava radicalmente a sua voz, servia de símbolo: Dylan não era o homem das canções sobre problemas sociais nem o revolucionário da guitarra; era um entertainer que mudava de acordo com o que cada canção, cada disco (ou o próprio Dylan) precisava.
Big Time é o disco que Angel Olsen precisava: durante a sua criação a sua mãe adotiva morreu, Olsen conheceu um novo amor (que compõe dois dos temas) e todo o disco é uma reflexão sobre estas curvas e contra-curvas que a vida nos lança: entre o fundo do poço e o êxtase mudamos e nunca sabemos exatamente como vamos mudar, o que vamos ser, quem vamos ser.
A country presta-se a estas reflexões existenciais e foi com a country de “Dream thing”, “Big time” (a extraordinária “Big time”, escrita a meias com a nova companheira, daquelas canções que parecem resumir uma vida inteira, que parecem resumir a vida de todos), Ghost on e Right now que o concerto começou: “Big time” ainda foi mais explosiva, mas “Ghost on” e “Right now”, calmas em disco, arrastam-se e de repente metem mais uma mudança, e reconhecemo-las e não as reconhecemos. “Right now” torna-se ainda mais feroz e alucinada no fim, com dissonâncias de cordas, guitarras a explodir e um baterista que a tarola terá, por certo, qualificado como sádico. A dimensão da banda ajuda: com Olsen são duas guitarras e depois ainda há teclas, um baixo que não está ali só a marcar o tempo e violino e violoncelo sempre em disputa (e essa disputa altera as canções face ao original).
As mudanças mais radicais são aplicadas às canções de All Mirrors – como é que transforma em country o que em disco é uma espécie de Bjork do campo? Mas “All Mirrors”, “Lark” e “Chance” (com que o concerto acaba, antes das três canções com que o primeiro set acaba) são agora um portento – há menos sintetizadores, mas as cordas ganham proeminência e a sua função não é adocicar, antes causar o caos, provocar motins. As duas versões de “Lark” (a do disco e a deste concerto) deviam ser mostradas a estudantes de música para provar que uma canção – como uma pessoa – nunca é a mesma coisa.
Não faço ideia o que Olsen tocou naquelas três canções a solo antes do encore – ela anunciou-as como canções novas, que parecem estar ainda em forma embrionária. Mas já com a banda de regresso ela ataca a sumptuosa “Without you”, escrita pelo grande Harry Nilsson (um dos desgraçados preferidos da folk) e popularizada por Mariah Carey. É escusado dizer que não só Olsen tem mais que voz para competir com Mariah Carey, como a sua versão é o final perfeito (e recebido em êxtase pela audiência) para uma noite em que Olsen confirmou aquilo que desconfiávamos: ela está numa fase em que não consegue errar, nada a para, tudo é motivo para criar, para experimentar, com a confiança dos que sabem que possuem um dom e aprenderam a usá-lo.
Aos 35 anos, Angel Olsen é um dogma.