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Um dogma chamado Angel Olsen: crónica de (mais) uma noite de glória no Capitólio

Este artigo tem mais de 2 anos

Um concerto que confirmou o que desconfiávamos: Angel Olsen está numa fase em que não consegue errar, nada a para, tudo é motivo para criar, com a confiança dos que sabem que têm um dom.

Angel Olsen, em digressão com o disco "Big Time", atuou na noite de segunda-feira no Capitólio e repete o concerto esta terça
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Angel Olsen, em digressão com o disco "Big Time", atuou na noite de segunda-feira no Capitólio e repete o concerto esta terça

VERA MARMELO

Angel Olsen, em digressão com o disco "Big Time", atuou na noite de segunda-feira no Capitólio e repete o concerto esta terça

VERA MARMELO

Costumamos atribuir rótulos aos músicos e apesar da variedade de rótulos possível, acabamos sempre por recorrer aos mesmos: Beyoncé é uma rainha, atletas como Harry Styles que trepam as tabelas de vendas sem introduzirem mudanças na cultura não passam do mero estatuto de super-estrela; quando Little Simz apareceu dizia-se que era uma promessa – hoje será talvez uma princesa; os Idles são punk, os Sault são experimentais – e Angel Olsen, aos 35 anos de idade, é um dogma.

Tal como Tomberlin, a menina que abriu o concerto de Angel Olsen ontem no Capitólio (Lisboa), e que editou este ano i don’t know who needs to hear this…, começou por ser rotulada como “baladeira folk”: naqueles primeiros EPs, há mais de uma década, era uma rapariga com uma guitarra acústica munida de uma voz extraordinária, mas remetida ainda à música acústica confessional.

Isto não era mau (antes pelo contrário, era bastas vezes muito bom), mas estava longe de nos fazer adivinhar o que viria a acontecer de 2014 para a frente: a partir de Burn Your Fire For No Witness (de, lá está, 2014) e até ao mais recente Big Time (deste ano), Olsen nunca mais parou de experimentar, combinar géneros, brincar com a estrutura das canções, descobrir o que podia fazer com a sua voz.

O pináculo de todas estas mudanças terá sido, talvez, esta segunda-feira à noite, em palco, com banda – e a palavra palco é importante, porque no fim acabámos a perguntar-nos como é possível que Olsen consiga trazer unidade a temas de tantos discos diferentes, tão opostos em termos de ambiente, da instrumentação original, de tempo? Nenhuma canção fica intacta: o que vivia de sintetizadores agora brilha graças a cordas; o que era lento agora ascende onde não se esperava; cada arranjo muda, a entrega vocal não é um decalque dos discos e nós ficamos naquela zona em que sentimos conforto ao reconhecer uma canção que adoramos mas em que de repente damos por nós a pensar “Espera aí, isto não era assim, o que raio vai acontecer a seguir?”.

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Um bom exemplo do estatuto que Angel Olsen alcançou – e atenção que isto pode vir a ser um spoiler – chega ao quinto tema da noite: ela diz que vai tocar uma canção que compôs de manhã, diz aos músicos que se não se sentirem à vontade ela pode tocar sozinha, mas que são profissionais e por isso deviam tentar tocar a canção que não conhecem, diz que é um risco, mas que não arriscar “is for losers”; e quando toda a gente está de pé atrás a pensar o que vai sair dali, a banda inteira ataca “Shut Up Kiss Me”, talvez a canção mais popular de Angel Olsen, um indie-rock diabólico que a tornou, da noite para o dia, uma semi-estrela indie emergente com direito a capas de revista.

Angel Olsen e a banda com a qual gera unidade entre temas de tantos discos diferentes, tão opostos em termos de ambiente, da instrumentação original, de tempo

VERA MARMELO

Olsen já por várias vezes disse que por ela já não tocava “Shut Up Kiss Me”, mas a importância da canção (e do disco a que pertence, My Woman, de 2016) não pode ser diminuída: foi aí que Olsen deixou de ser baladeira, aprendeu a rockar, a usar a sua voz no limite do drama, a não ter vergonha de fazer melodias, a trazer ruído para dentro das suas canções, a enchê-las de arranjos, a experimentar com sintetizadores – enfim, foi aí que ela largou as amarras da folk e descobriu como tornar cada canção não só única como imensa: antes ela era uma voz grande num instrumental fininho, a partir daí passou a ser a conjuradora das marés que sobem e descem a canção.

O disco seguinte, All Mirrors (2019), era ainda mais radical, repleto de sintetizadores e cordas opulentas, majestáticas – as canções pareciam perder o centro e seguir o drama da voz de Olsen, como se a cada segundo não soubessem onde a canção ia parar. Talvez pela radicalidade desta sequência de discos, Big Time, o álbum deste ano, viu alguns fãs torcerem-lhe o nariz: Big Time não é bem um regresso à folk, antes uma viagem à country sofrida e mais rica – o equivalente para o século XXI ao que Dylan fez quando, no topo da sua popularidade, e após o seu famoso acidente de mota, se retirou para Woodstock e, quando regressou, largou a eletricidade e lançou John Wesley Harding e Nashville Skyline – este último, uma incursão pela country em que Dylan mudava radicalmente a sua voz, servia de símbolo: Dylan não era o homem das canções sobre problemas sociais nem o revolucionário da guitarra; era um entertainer que mudava de acordo com o que cada canção, cada disco (ou o próprio Dylan) precisava.

Big Time é o disco que Angel Olsen precisava: durante a sua criação a sua mãe adotiva morreu, Olsen conheceu um novo amor (que compõe dois dos temas) e todo o disco é uma reflexão sobre estas curvas e contra-curvas que a vida nos lança: entre o fundo do poço e o êxtase mudamos e nunca sabemos exatamente como vamos mudar, o que vamos ser, quem vamos ser.

A country presta-se a estas reflexões existenciais e foi com a country de “Dream thing”, “Big time” (a extraordinária “Big time”, escrita a meias com a nova companheira, daquelas canções que parecem resumir uma vida inteira, que parecem resumir a vida de todos), Ghost on e Right now que o concerto começou: “Big time” ainda foi mais explosiva, mas “Ghost on” e “Right now”, calmas em disco, arrastam-se e de repente metem mais uma mudança, e reconhecemo-las e não as reconhecemos. “Right now” torna-se ainda mais feroz e alucinada no fim, com dissonâncias de cordas, guitarras a explodir e um baterista que a tarola terá, por certo, qualificado como sádico. A dimensão da banda ajuda: com Olsen são duas guitarras e depois ainda há teclas, um baixo que não está ali só a marcar o tempo e violino e violoncelo sempre em disputa (e essa disputa altera as canções face ao original).

As mudanças mais radicais são aplicadas às canções de All Mirrors – como é que transforma em country o que em disco é uma espécie de Bjork do campo? Mas “All Mirrors”, “Lark” e “Chance” (com que o concerto acaba, antes das três canções com que o primeiro set acaba) são agora um portento – há menos sintetizadores, mas as cordas ganham proeminência e a sua função não é adocicar, antes causar o caos, provocar motins. As duas versões de “Lark” (a do disco e a deste concerto) deviam ser mostradas a estudantes de música para provar que uma canção – como uma pessoa – nunca é a mesma coisa.

Não faço ideia o que Olsen tocou naquelas três canções a solo antes do encore – ela anunciou-as como canções novas, que parecem estar ainda em forma embrionária. Mas já com a banda de regresso ela ataca a sumptuosa “Without you”, escrita pelo grande Harry Nilsson (um dos desgraçados preferidos da folk) e popularizada por Mariah Carey. É escusado dizer que não só Olsen tem mais que voz para competir com Mariah Carey, como a sua versão é o final perfeito (e recebido em êxtase pela audiência) para uma noite em que Olsen confirmou aquilo que desconfiávamos: ela está numa fase em que não consegue errar, nada a para, tudo é motivo para criar, para experimentar, com a confiança dos que sabem que possuem um dom e aprenderam a usá-lo.

Aos 35 anos, Angel Olsen é um dogma.

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