A publicação de um novo vídeo captado no passado sábado, instantes antes de o ex-Presidente Hu Jintao ter sido forçado a abandonar o Grande Salão do Povo, em Pequim, onde decorria o 20.º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC), veio reforçar os rumores sobre os motivos que levaram Xi Jinping a exigir a saída do seu antecessor.
Enquanto na China o nome de Hu Jintao, que foi Presidente entre 2003 e 2013, foi riscado de todas notícias sobre o congresso e passou a ser impossível de pesquisar em redes sociais como o Weibo, o Twitter chinês, no resto do mundo multiplicam-se as teorias sobre os motivos que poderão ter levado ao afastamento do ex-líder — e no cerne de quase todas elas está uma misteriosa pasta vermelha.
Pode ver-se no vídeo de 2 minutos e 56 segundos divulgado com um delay de dois dias pelo Channel News Asia (CNA), de Singapura: enquanto lhe diz qualquer coisa impossível de descortinar, Li Zhanshu, presidente do Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo, retira das mãos de Hu Jintao uma folha A4, que devolve à pasta vermelha pousada na mesa, no lugar do ex-Presidente. Ato contínuo, Zhanshu afasta de Jintao a pasta, aparentemente igual à que todos os membros do congresso têm à frente, e mantém-na fora do alcance do antigo líder chinês, que ainda tenta puxá-la novamente para o seu lado, aparentemente para a poder ler, mas sem sucesso.
Nessa altura, Wang Huning — teórico do PCC, um dos mais próximos conselheiros de Xi Jinping e há cinco anos membro do Comité Permanente do Politburo que governa a China, com o atual Presidente à cabeça — intervém e gesticula, como que a pedir calma a Hu Jintao. Logo a seguir, a câmara do CNA desvia-se para a esquerda e mostra Xi Jinping que, de expressão inescrutável, reclama pela intervenção de um dos dois membros da segurança que instantes depois hão-de escoltar o ex-Presidente para fora do Grande Salão do Povo — contra a sua vontade e sem que a pasta vermelha lhe seja devolvida.
Apesar do olhar aparentemente perdido e confuso de Hu Jintao, que em dezembro completa 80 anos e é um dos dois únicos ex-Presidentes chineses ainda vivos — o outro é Jiang Zemin (1993-2003), atualmente com 96 anos, que não marcou presença no congresso —, os analistas acham pouco credível que o antigo líder tenha sido escoltado para fora do recinto por motivos de saúde, a explicação avançada pela Xinhua, a agência de notícias oficial do governo da República Popular da China.
“Quando não se sentiu bem durante a sessão, o seu staff, a bem da sua saúde, acompanhou-o a uma sala ao lado do local da reunião para descansar. Agora, está muito melhor”, escreveu a Xinhua na sua conta de Twitter, em inglês, acessível ao mundo mas não aos internautas chineses (a rede social está bloqueada no país). Em vez de citar o governo ou fonte do Partido Comunista Chinês, que até agora não ensaiaram qualquer justificação para o incidente nem responderam aos pedidos de comentário por parte da imprensa internacional, a agência citou o seu repórter presente no local, que acrescentou que, apesar de estar ainda em convalescença de uma doença ou condição não nomeada, tinha sido Hu Jintao a “insistir em assistir à sessão de encerramento do 20.º Congresso Nacional do Partido”. Desde então, o PCC também não fez qualquer referência à saúde do seu ex-Secretário-Geral, o que também seria expectável caso a tese “motivos de saúde” fosse verdadeira.
When he was not feeling well during the session, his staff, for his health, accompanied him to a room next to the meeting venue for a rest. Now, he is much better.
— China Xinhua News (@XHNews) October 22, 2022
Em contracorrente face à teoria, que entretanto se disseminou, de que Hu Jintao teria sido levado à força para fora da sala para ser impedido de ler o que estava na pasta, Deng Yuwen, ex-editor do Study Times, o jornal do Partido Comunista, garantiu à BBC que não faz qualquer sentido que o PCC tenha colocado à frente do ex-Presidente uma série de documentos se não quisesse que ele os pudesse ler. Ainda para mais, numa reunião aberta a 2.300 delegados do partido e às câmaras de publicações nacionais e estrangeiras — recorde-se que o incidente teve lugar justamente após a sessão, até então interdita aos jornalistas, ter sido aberta à imprensa, já os 203 membros do Comité Central tinham sido eleitos. “Foi de facto uma situação invulgar. Ninguém pode explicar o que aconteceu até haver mais provas sobre o que estava dentro da pasta, ou sobre o que foi dito no local”, descartou o também investigador do Instituto de Política da China da Universidade de Nottingham.
Já Wen-ti Sung, professor na Universidade Nacional Australiana, disse ao canal de televisão britânico que, por muito que o novo vídeo continue a não permitir que se retirem conclusões definitivas sobre o que de facto aconteceu, pelo menos justificará em parte os rumores a circular, com as devidas reservas sobre as analogias com as purgas mortais de Mao Tsé-Tung. “A China tem tudo a ver com ordem, especialmente em eventos de grande visibilidade como este e especialmente na era de Xi, onde tudo tem a ver com controlo. Portanto, um Hu indiscutivelmente descontrolado e esta saída súbita são definitivamente situações estranhas, e é por isso que justificam muitos dos rumores. Mas isso não quer dizer que os rumores ou especulações sobre uma purga sejam necessariamente corretos.”
A thread on the key moments:
1/ Current Chairman of China’s legislature, Li Zhanshu, is seen taking papers out of Mr Hu’s hand, arranging it and placing it back on the table, while leaning in and speaking to him pic.twitter.com/UsZv6Kk5Ny— Olivia Siong (@OliviaSiongCNA) October 24, 2022
A verdade é que, dentro do PCC, Hu Jintao seria o dono de uma das vozes mais dissonantes e progressistas, ao contrário de Xi Jinping que, este domingo, deu início ao seu terceiro mandato como Presidente do país — cada vez mais isolado e omnipotente. Hu Jintao acabou silenciado e afastado perante a imprensa internacional e nacional, num momento em que Xi Jinping, agora com 69 anos, se consolidou como figura primeira e única da política chinesa.
Já a ser arrastado para fora do Grande Salão do Povo, pelos dois seguranças a quem entretanto Xi Jinping parece dar algumas instruções, Hu Jintao ainda interpelou o seu sucessor que, sem olhar na sua direção, aquiesceu apenas, acenando com a cabeça numa espécie de despedida. Enquanto isso, todos os restantes membros do Politburo e do PCC visíveis no enquadramento permanecem impassíveis, como se nada de anormal estivesse a acontecer perante os seus olhos. Na assembleia, e visíveis nas imagens, o Channel News Asia identificou figuras como o vice-primeiro-ministro Liu He, o diplomata Yang Jiechi e o vice-presidente da Comissão Militar Central, o general Zhang Youxia. O próprio primeiro-ministro Li Keqiang, que no sábado foi afastado do Politburo, cúpula de sete lugares em que só têm assento os membros do Comité Central do partido, a que deixou de pertencer, também não reagiu quando, de saída, Hu Jintao lhe posou a mão no ombro.
De acordo com o correspondente do espanhol ABC em Pequim, que captou todo o incidente em fotografia através da sua teleobjetiva de 400 milímetros, nesse momento Xi Jinping terá esboçado um “meio sorriso”. Tal como Hu Jintao, Li Keqiang está associado à chamada fação da Liga Comunista da Juventude, organismo que em maio deste ano Xi Jinping instou à “autorrenovação” e à obediência “estreita” do Partido Comunista Chinês. Depois do que aconteceu este sábado, ambos viram as respetivas carreiras políticas chegar ao fim.
Diz o jornalista espanhol que, em folhas A4, na misteriosa pasta vermelha, estariam as listas eleitorais do Comité Central e da Comissão de Inspeção Disciplinar do PCC. De entre os mais de duzentos nomes impressos, não constaria nem um dos políticos aliados ao ex-Presidente.
Segundo o Guardian, além de terem sido apagadas, nos media chineses, todas as referências ao incidente e de ter passado a ser impossível pesquisar e comentar nas redes sociais pelo nome de Hu Jintao, também Hu Haifeng, filho do ex-Presidente, viu o seu nome “bloqueado pelos censores chineses”.