Há um momento de “Alma Viva”, a primeira longa-metragem da lusodescendente Cristèle Alves Meira (“Campo de Víboras), em que parece que a história vai entrar pelo território do realismo mágico, ou do terror sobrenatural, o que não chega a suceder. Talvez seja pedir demais a um filme português, e apesar das sugestões fantásticas que são lançadas, “Alma Viva” fica-se por ser sobre a dor de uma menina por ter perdido a avó que adorava, e sobre uma família transmontana separada pela emigração, que entra em conflito após a morte da matriarca.

Como sucede sempre no verão, a pequena Salomé (Lua Michel), filha de emigrantes em França, está a passar as férias na aldeia da família em Trás-os-Montes, com a sua querida avó (Ester Catalão), um tio cego e com ouvido para a música (Arthur Brigas), e uma tia solteirona (Ana Padrão). A avó de Salomé tem fama de “bruxa” na aldeia, e a menina, fascinada pelos rituais e pelo ambiente “mágico”, ajuda-a na preparação das mezinhas e das rezas para os clientes, não resiste e ir espreitar as “consultas” que ela dá e bebe-lhe os conselhos e as histórias.

[Veja o “trailer” de “Alma Viva”:]

Um dia, a avó morre subitamente. O médico diz ter sido um ataque de coração ou um AVC, mas Salomé sente-se culpada por ter trazido para casa, para o jantar, peixe dado por uma vizinha também com reputação de “bruxa” e supostamente rival da avó. Impressionadíssima e devastada, a menina não sai da beira do caixão da anciã, que está em casa para poder ser velada por família e vizinhos como ainda se faz em muitas aldeias, e começa a comportar-se de forma estranha e a dizer que vê o espírito da avó, que lhe faz pedidos para o funeral (o filme não deixa bem claro se ela aparece mesmo à neta, ou se Salomé está apenas profundamente transtornada). Entretanto, à sua volta, a família discute de forma cada vez mais violenta por causa do enterro e de dinheiros.

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Cristèle Alves Meira inspirou-se na morte da avó materna para fazer “Alma Viva”, rodado na aldeia em que aquela e a sua mãe nasceram, e sabe do que está a falar. Das figuras locais aos ambientes, da atmosfera humana aos hábitos e às formas de relacionamento, nada neste filme soa falso, forçado ou postiço, como acontece em muitas fitas portuguesas passadas no interior do país (o elenco mescla atores profissionais e “civis” sem que se note muito). E a realizadora capta bem a coabitação de tradições, superstições e crenças, com sinais e objetos do mundo moderno, muitos deles trazidos pelos emigrantes em França que vêm de férias à terra (ver o carro vistoso do tio de Salomé, que está a construir uma piscina ao pé de sua casa).

[Veja uma entrevista com Cristèle Alves Meira:]

“Alma Viva” tem uma costela tragicómica, porque ao desespero e à dor da pequena Salomé (muito bem composta por Lua Michel, filha da realizadora) junta-se a comédia negra da feia – e caracteristicamente portuguesa — desavença entre os membros da família, com recriminações, acusações, azedumes e frustrações e muito vernáculo pesado pelo meio, que dá origem a um episódio macabro em pleno velório, até ao funeral que decorre com um incêndio a chegar às portas da aldeia e uma evacuação dos habitantes em curso, culminando no cemitério, onde a voz do sangue fala mais alto do que a discórdia. Avó e neta ficam finalmente em paz, aquela entre os mortos, esta com a memória da falecida e com os que ficam.

Como diz o tio ceguinho e das músicas no fecho da fita: “Os vivos fecham os olhos aos mortos e os mortos abrem os olhos aos vivos”. É a conclusão certa e a síntese perfeita de “Alma Viva”, que foi indicado para representar Portugal à nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional. E nos deixa muito curiosos sobre o próximo filme de fôlego longo de Cristèle Alves Meira.