Apaixonada pela bossa nova, nunca deixou a musicalidade da Bahia fora de uma criatividade ímpar na hora da interpretação. Com Caetano descobriu a amizade musical que a levaria por muitos caminhos, da tropicália à reinvenção a bordo de estúdios recheados de hipóteses, já no século XXI. Foi estrela da MPB e inimiga da ditadura militar; foi arriscada, polémica, unânime, mas também viu velhos seguidores a recusar a contínua reinvenção de uma Gal que queriam para sempre clássica. Soube ser sex symbol, não pela sexualidade mediática, mas por tudo o que isso lhe permitia descobrir pelo seu caminho criativo, social e político.

Foi inspirada e inspirou, continuava a inspirar, com novas vozes como Tim Bernardes, Rubel ou Mallu Magalhães a saber aspirar tudo o que esta índia foi deixando pelo caminho. Gal Costa morreu esta quarta-feira, dia 9 de novembro, aos 77 anos. Tudo o que fez foi pelas canções e ficou nas canções. Recordemos dez, como ponto de partida para um percurso gravado em disco como poucos:

“Coração Vagabundo”

1967

Foi em 1967 que o disco Domingo, com selo da Philips, reuniu a voz dos estreantes Gal Costa e Caetano Veloso. Uma aposta certeira da editora, que iria evidenciar o talento irrepreensível dos dois jovens baianos e, inesquecivelmente, a voz mágica e singular de Gal Costa. É deste registo que surge “Coração Vagabundo”, um verdadeiro e primeiro grande sucesso, refinado e simples, de versos elegantes ao jeito do que melhor se produziu na bossa nova. Foi o registo de letra e voz, antes mesmo do início da Tropicália, o movimento estético que iria transformar radicalmente o panorama da música popular brasileira nas décadas seguintes.

“Baby”

1968

É uma canção tão facilmente reconhecível quanto icónica. Lançada em 1968, no álbum Tropicália ou Panis et Circencis, “Baby” tem letra de Caetano Veloso, tendo sido composta a pedida da sua irmã, Maria Bethânia. Mas foi a sua associação simbiótica com a voz de Gal que se tornou num sucesso junto do público. Um sucesso que motivou a cantora a regravar a canção mais cinco vezes ao longo da sua carreira. Seria aliás integrada no álbum homónimo da cantora em 1969.

“Divino, Maravilhoso”

1968

Composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil e lançada em 1968, a canção “Divino, Maravilhoso” tornou-se rapidamente numa marca de água do manifesto que foi o movimento tropicalista. Numa época de grande efervescência popular na sociedade brasileira, a participação de Gal Costa na quarta edição do Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, com esta canção, tornou-se um marco na sua carreira: Gal defendeu o tema de tal forma, com um visual arrojado e uma postura marcante, que a performance dividiu opiniões entre a plateia. Sobre o momento, diria mais tarde: “Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa.” Era, afinal, a Gal Costa que iria continuar a despertar paixões e guerras, sem nunca perder a expressão polarizante e política da sua música.

“Meu Nome é Gal”

1969

A música, que dá nome à biopic atualmente em produção e que irá estrear-se algures no próximo ano, integra o primeiro disco a solo de Gal Costa, lançado em 1969. Era a apresentação inequívoca da cantora, que de forma irónica dispensava apelido, numa letra composta por Roberto e Erasmo Carlos a pedido do então empresário da cantora, Guilherme Araújo. Nessa elegância desmedida, Gal fala sobre o desejo de encontrar um grande amor. Podemos dizer que, neste caso, foi o público brasileiro que se apaixonou em definitivo pela artista que manteve uma postura transgressora ao longo da carreira.

“Vapor Barato”

1971

Lançada em 1971, a música foi um dos maiores sucessos do álbum ao vivo Fa-Tal. De índole política, a canção foi escrita durante a ditadura militar e vista como reflexão sobre os muitos exílios forçados ou voluntários que estavam a acontecer. Caetano Veloso e Gilberto Gil exilaram-se em Londres e Gal Costa tornou-se a voz contestatária em representação daqueles que foram saindo do Brasil. Surge também como crítica ao Ato Inconstitucional nº 5, o AI-5, que restringia os direitos políticos e a liberdade de imprensa. Foi utilizada em 1996 pelo cineasta brasileiro Walter Salles na banda sonora do filme “Terra Estrangeira”.

“Milho Verde”

1973

Numa releitura da canção popular portuguesa, celebrada por José Afonso, Gal Costa mostrava porque é que a sua visão da expressão musical não tinha fronteiras estéticas definidas. A versão constava do disco Índia, de 1973, onde se mistura a folk, o jazz, o funk e o rock numa harmonia singular e, desde logo, aclamada pela crítica. A sua capa, com referências indígenas e sexuais, foi censurada pela ditadura militar e “Milho Verde” não poderia por isso surgir como melhor referência face à difícil situação política que se vivia no Brasil, mas também em Portugal, em vésperas de revolução.

“Negro Amor”

1977

Considerada como uma das melhores faixas do registo de 1977 Caras & Bocas, “Negro Amor” é, na verdade, a versão portuguesa de “It’s all over now, baby blue”, música da fase inicial e marcadamente folk de Bob Dylan. Mas era mais do que isso: Gal Costa unia assim os traços modernistas das obras de Caetano Veloso, Jorge Ben Jor e de Bob Dylan, numa composição pautada pela intensidade. Era o ponto de encontro entre a soul e o samba brasileiro com o blues, mantendo a grande carga poética e mística, bem presente na obra de vários artistas brasileiros à época.

“Vaca Profana”

1984

Novamente com letra de Caetano Veloso, “Vaca Profana” faz parte do álbum Profana, lançado em 1984. Foi encomendada por Gal a Caetano Veloso, que estava na Europa, o que justifica as referências ao velho continente, nomeadamente à cultura hispânica. Com uma letra muitas vezes vista como provocatória sobre o que se considera sagrado, fora ou não dos preceitos religiosos, a canção conquistou o Brasil pela voz inconfundível de Gal, mas também pelo seu tom enigmático e disruptivo.

“Um Dia de Domingo”

1985

Um dos grandes sucessos na sua carreira, “Um Dia de Domingo” juntava a voz de Gal Costa com a do também icónico artista brasileiro Tim Maia, que haveria de morrer em 1998. A junção de duas vozes irrepreensíveis e indescritíveis naquilo que foi o panorama da música brasileira das últimas décadas. Integrou o disco Bem Bom, de 1985, o vigésimo registo da cantora, que atingiu mesmo o número um do top em Portugal. É justo afirmar que o dueto com Tim Maia fez sucesso, mesmo que a crítica tenha visto o dueto somente como forma de afirmação comercial.

“Autotune Autoerótico”

2011

Num registo bem mais recente, a canção “Autotune Autoerótico” fez parte de Recanto, lançado em dezembro de 2011. Depois de ter atravessado os primeiros anos do novo século numa marcha lenta e mais contida, o registo marcava o regresso da Gal ao estrelato, através de um disco feito de camadas eletrónicas e jazz, hermético e por vezes sombrio, mas que entrou diretamente para as listas de melhores discos daquele ano. “Autotune Autoerótico” era a expressão inventiva de uma artista cujo criatividade não se extinguiu com o passar dos anos. Mais uma vez com a marca inegável de Caetano.