Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

A influência de treinadores espanhóis e portugueses no futebol do Qatar ao longo da última década é grande. O investimento em infraestruturas, ainda maior. A esperança um bocadinho mais larga ainda. No entanto, a seleção anfitriã era sobretudo uma incógnita. Porquê? 1) por mais vídeos que se possam fazer, a seleção tem 50 anos e só mais recentemente a liga foi tentando melhorar; 2) porque, ao contrário do que acontece em modalidades variadas, o português Pedro Miguel Correia, mais conhecido como Ró-Ró, era o único jogador naturalizado; 3) nos últimos seis meses, a seleção esteve sempre concentrada entre Marbelha, Áustria e Málaga (sem olhar a gastos, o que é comum aqui) sem uma única imagem, vídeo ou contacto com o exterior, incluindo os jogos particulares nesse período. O espanhol Félix Sánchez tinha a vantagem natural de contar com um total de 13 jogadores do Al Sadd mas ninguém imaginava com o que podia ao certo contar.

Dia 1 do Mundial. Equador vence Qatar no jogo inaugural, é a primeira vez que um anfitrião perde a primeira partida (0-2)

Era esse o grande motivo de interesse neste encontro de abertura do Mundial, frente a um Equador que não apresentou a mesma qualidade que teve noutros tempos ao longo da qualificação da América do Sul mas que tinha nomes como Moises Caicedo, Enner Valencia ou Gonzalo Plata capazes de desequilibrarem um jogo de um momento para o outro. Contas feitas, nem os sul-americanos precisavam assim tanto de ser fortes, nem os visitados tinham qualquer tipo de argumento para discutir o jogo, fazendo uma exibição que em alguns momentos chegou a ser confrangedora tendo em conta as expetativas que tinham sido criadas.

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O primeiro tempo explicou muito do que a ansiedade pode provocar numa equipa. Apesar de tudo, o Qatar foi campeão da Ásia em 2019, teve carreiras interessantes em provas continentais de formação e estava com o foco sobretudo neste arranque. Afinal, e com 35 minutos de jogo, já havia adeptos de mãos na cara perante o medo de sofrer mais golos frente a um Equador que, sem ser muito bom, foi de forma tranquila melhor. E o primeiro golo que seria depois invalidado pelo VAR funcionou como aviso para o que acabaria depois por acontecer de forma natural: entre erros primários da defesa e sobretudo do guarda-redes Saad Al-Sheeb, os sul-americanos inauguraram o marcador de penálti aos 16′ e aumentaram a vantagem numa boa jogada coletiva aos 31′, sempre com Enner Valencia a marcar, Preciado a distribuir e Caicedo a jogar.

O mérito do Equador era evidente, a capacidade goleadora do avançado que joga com Jorge Jesus nos turcos do Fenerbahçe também, mas o único remate dos visitados já em período de descontos com um desvio de cabeça de Almoez Ali demasiado mau e ao lado para ser verdade era um bom exemplo de como tudo corria mal ao Qatar, engolido no jogo em termos táticos mas traído também pela responsabilidade da estreia. E, para os mais atentos, aquilo que aconteceu na segunda parte em nada ajudou para que existisse algum tipo de revolta perante o que se passava em campo, com milhares de pessoas a abandonarem mais cedo o Estádio Al Bayt num cenário bem percetível nas bancadas enquanto o Equador foi controlando sempre a partida sem criar muitas ocasiões para ampliar a vantagem mas mostrando que poderia ampliar a vantagem perante a falta de réplica do conjunto qatari para quem o final do jogo era visto quase um mal menor. E ainda haveria algo mais estranho para acontecer até ao final, com o anúncio de 67.372 espectadores num recinto que, de acordo com os dados da própria FIFA, só teria capacidade para albergar… 60.000 pessoas.

A pérola

  • Passou por Emelec e Pachuca, esteve dois anos no West Ham com uma cedência ao Everton pelo meio, regressou ao México via Tigres, está desde 2020 no Fenerbahçe agora comandado por Jorge Jesus. Aos 33 anos, Enner Valencia não tem uma má carreira mas todos esperaram sempre que chegasse a patamar mais altos. Nesta fase, já é complicado. No entanto, não deixou de aproveitar aquele que deverá ser o seu último Mundial para deixar marca logo a abrir: inaugurou o marcador aos 3′ num lance anulado, ganhou e converteu uma grande penalidade aos 16′, bisou com um grande cabeceamento aos 31′ e foi sempre a voz da liderança da equipa (saudada de forma audível nas bancadas com um Eeeeennneeerrr), tornando-se apenas o terceiro jogador a marcar dois golos logo no jogo de abertura de um Campeonato do Mundo depois de Neymar em 2014 pelo Brasil e de Cheryshev em 2018 pela Rússia.

O joker

  • A forma como os adeptos se levantaram a bater palmas quando foi anunciado no onze titular mostra que Moises Caicedo é cada vez mais uma figura na seleção (e também na Premier League pelo Brighton) e as rotinas de jogador à parte estão todas lá, tendo sido massajado com um creme no peito e nas costas antes do apito inicial como se estivesse a ganhar pulmão para encher o campo como viria a acontecer. Além dele, Preciado foi sempre uma unidade importante pelas vezes em que descia pela ala direita tendo Gonzalo Plata a jogar mais por dentro e Hincapié comandou de forma imperial a defesa. No lado oposto, Ró Ró, jogador que sofreu a primeira falta do Mundial e cometeu também a segunda, foi o menos mau de um Qatar completamente à deriva, tendo um cabeceamento com perigo aos 62′.

A sentença

  • Tem uma carreira feita como sénior desde 2008 no Al Sadd, já tem a experiência de um jogador de 32 anos, foi várias campeão nacional, chegou mesmo a campeão asiático pela seleção em 2019 ganhando o prémio de melhor guarda-redes. Se o Qatar quebrasse na abertura não seria por Saad Al-Sheeb. Afinal, o Qatar começou a quebrar por Saad Al-Sheeb (que sempre que saía da baliza errava mas no final estava sempre a protestar com os companheiros da defesa). E com Países Baixos no grupo, este pode ter sido o final logo a começar para os anfitriões. Em contrapartida, o Equador depende de si para chegar aos oitavos com a vantagem de partir logo com três pontos e fechar a fase de grupos frente ao Senegal.

A mentira

  • A bancada atrás da baliza para onde o Equador atacava na primeira parte estava despida de público até à cerimónia de abertura. De repente apareceu cheia, num setor com milhares de pessoas que entraram e tiveram um comportamento típico de claque, com várias coreografias ensaiadas e cânticos que em alguns casos até pareciam ter semelhanças com os que se ouvem na Europa e na América do Sul. Ora, tendo em conta que antes até aí o mais excitado adepto agitava apenas uma pequena bandeira para exteriorizar essa emoção, é fácil perceber a parte artificial do fenómeno… Mas houve um outro aspeto que se percebeu no Al Bayt. Para milhares e milhares de locais, com muitas crianças à mistura que iam devidamente equipadas, este foi um dia memorável em tudo mas não fez com que soubessem em todos os momentos como funciona. Exemplo: só alguns segundos depois perceberam que o VAR anulara um golo, começando então a celebrar porque a mensagem apareceu nos ecrãs gigantes. E para acabar a noite, houve ainda um anúncio de 67.372 espectadores num estádio com… 60.000.