Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Podia ter sido apenas o fogo de vista de um jogo, podia ter sido somente um fogacho perante uma equipa que é infinitamente inferior, podia ter sido resumidamente a velinha de um dia em que tudo corre bem. Podia ser tudo mas era bem mais do que isso e a Alemanha sabia bem ao que vinha na partida frente à Espanha depois do atropelo sem fuga à Costa Rica. Foi por isso que Hansi Flick mexeu, reforçando o corredor central com um Goretzka cada vez mais fit (já aqui contámos a história de como o médio ganhou o cabedal que apresenta agora após ter cortado com uma série de alimentos que prejudicavam o rendimento) e tentando anular todos os pequenos canais de acesso ao último terço ofensivo da Roja. Foi assim em campo, foi assim fora dele. E centenas de adeptos e jornalistas tiveram de puxar da versão fit possível para chegar a tempo.

Como contámos na abertura do Mundial, o Estádio Al Bayt é o exemplo paradigmático de como nem sempre o que é parece. “Ah, e tal, Mundial friendly para o adepto, o metro vai até todo o lado etc.”, dizia-se. Não é sempre assim. E este majestoso estádio em forma de tenda forrado no interior pela tapeçaria tradicional do Qatar (nota: ninguém coloca aqui em causa a obra e a sua beleza) fica a uma distância de pelo menos mais 45 minutos apanhando um autocarro na estação de metro de Lusail. Para quem está no centro, são mais 30/40 minutos até chegar, com mudanças de linha pelo meio. Mais vale ir num autocarro oficial da FIFA. Ou, como aconteceu em caso de atraso para o último autocarro que saía às 19h15 locais, num carro oficial da FIFA. Na teoria, era um plano que não tinha como falhar; na prática, dificilmente poderia falhar mais mesmo faltando ainda quase duas horas para o apito inicial do jogo grande de toda a fase de grupos.

Até a uns cinco quilómetros do Al Bayt, entre trânsito criado por semáforos e aquela habitual confusão nas principais artérias, as coisas estavam relativamente bem e até dava para dar deitar um olhinho no Croácia-Canadá (e antes, a partir das 13h, tinha sido in loco o Japão-Costa Rica que pode ter grande influência na forma como vai acabar o grupo); a partir daí, desastre. Tudo parado. Nem aqueles metritos da esperança já a ver o estádio lá ao fundo. Zero, zerinho. A cabeça já pensava no que as pernas temiam e as costas choravam. Tinha medo de ser, a pé até ao recinto. Em passo acelerado, depois a correr, depois em passo acelerado. Os minutos a passar e não havia ritmo que tivesse o condão de parar o tempo como os mágicos espanhóis fazem e o estatuto da melhor Mannschaft consegue sempre fazer. Ia ser complicado.

No meio da improvisada São Silvestre de Al Khor, um autocarro que seguia praticamente vazio parou e deu uma mão divina com quatro rodas a parte de todas aquelas centenas de pessoas que andavam ali na berma da estrada a correr, em passo acelerado ou a andar recuperando fôlego para correr ou ir em passo acelerado. A zona onde ficam depois as pessoas podia ser bem mais perto do que era mas, com aquela folga que surgiu do nada, zero queixas. Menos cinco minutos de um grande jogo são sempre menos cinco minutos de um grande jogo mas há ainda mais 85 e aqueles mega festivais de descontos a justificar o esforço para compensar o que não devia acontecer. Foi assim fora de campo, foi assim também dentro do mesmo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Primeiro foi assim na versão agarra-me se puderes, com a Alemanha a sentir dificuldades em travar o jogo apoiado da Espanha e a fazer uma gestão de danos no espaço que deixava ou não que isso acontecesse. Depois, entrou em campo a parte da fuga contra o tempo, com os espanhóis a aproveitarem a pouquinha gasolina que ainda tinha no tanque para “matar” o jogo e os germânicos a darem tudo para chegarem ainda ao golo do empate. Foi assim que acabou a partida, num resultado que é melhor para a Espanha do que para a Alemanha. No entanto, valeu a pena a corrida para assistir a um dos melhores e mais competitivos jogos deste Mundial até agora. E deixou esse conselho aceite de ficar mais fit e não perder nem cinco minutos.

Luis Enrique ainda se riu quando na conferência de imprensa os jornalistas partiram do princípio que iria fazer algumas mexidas no onze inicial. Sabia porquê: à exceção da troca de Carvajal por Azpilicueta, foi tudo igual em relação ao conjunto que goleou a Costa Rica. E foi assim que, logo no arranque, Gavi voltou a fazer das suas a partir do meio, Marco Asensio assistiu e Dani Olmo acertou no poste com Neuer a tocar ainda de forma decisiva para mudar a trajetória do remate (7′). Já Hansi Flick, de quem se esperava uma espécie de revolução depois do desaire com o Japão, fez poucas e cirúrgicas trocas, com a saída de Nico Schlotterbeck para entrada de Kehrer ficando Süle como central como Rüdiger e também Havertz a deixar a frente para Thomas Müller e a entrada de Goretzka no reforço do meio-campo a três com Kimmich e Gündogan. E foi assim que Goretzka arrancou pelo meio assistindo Gabry para grande defesa de Unai Simón (11′).

A Espanha tinha o dobro da posse mas bem mais atrás em campo do que é normal e sem tanto espaço por metro quadrado para Pedri e Gavi trabalharem (não que precisem de muito mas o mínimo dos mínimos é sempre necessário ou ninguém sai de onde está), ao passo que a Alemanha ia tentando bloquear o jogo por dentro dos espanhóis ao mesmo tempo que procurava os espaços que ficavam para colocar transições. Foi assim que o jogo foi andando para o intervalo, com Jordi Alba a arriscar de meia distância e de pé direito mas ao lado (22′), Gnabry a atirar também ao lado num lance que nasce de um erro com os pés de Simón (25′), Ferran Torres a falhar isolado na área de forma descarada com a “sorte” de já estar em fora de jogo (33′) e Rüdiger a marcar mesmo na sequência de um livre lateral mas em fora de jogo de VAR (40′). 

A Alemanha sabia o que tinha feito bem mas também sabia o que tinha ainda mais para fazer e foi assim que subiu as linhas para uma pressão bem mais alta que secou nos minutos iniciais a construção da Roja e quase valeu o golo de Kimmich, que roubou a bola a Pedri, combinou com Gündogan e rematou para Simón fazer um mea culpa pelo errático jogo com os pés (56′). Luis Enrique tinha de fazer alguma coisa e colocou uma referência mais fixa na frente com Morata, fazendo descair Asensio para a direita no lugar de Ferran Torres. Demorou um par de minutos até marcar, num grande jogada de envolvimento que passou no final pelos pés de Dani Olmo com assistência de Jordi Alba para o desvio ao primeiro poste do Atl. Madrid (62′).

Hansi Flick teria obrigatoriamente de reagir perante a possibilidade de ficar quase de fora do Mundial e as alterações que promoveu acabaram por surgir efeito também pela incapacidade que a Espanha ia mostrando de controlar e dominar com bola a não ser nos cinco/sete minutos que se seguiram ao golo. E a Alemanha foi carregando no plano territorial. Carregando, carregando até que um panzer acabado de chegar à frente de ataque chamado Füllkrug combinou à entrada da área para disparar um míssil cruzado sem hipóteses (83′). Não podendo haver uma vitória que colocasse todo o grupo E empatado, sobrou esse mal menor.

A pérola

  • É difícil escolher uma estrela quando se tem à frente uma constelação onde em vários casos ou jogam muito bem ou jogam só bem. De um lado há Pedri, há Gavi, há Busquets. Do outro há Kimmich, há Gündogan, há Musiala. No entanto, muitas vezes quando olhamos para o céu há aquela estrela que achamos mais piada mesmo não sendo a mais conhecida, a mais brilhante e a mais mediática. Neste Mundial, esse papel está destinado a Dani Olmo. E mesmo de forma discreta, voltou a fazer um jogão e a justificar na totalidade o porquê de continuar a ser titular (e não substituído com a Alemanha).

O joker

  • Foi aquele “jogador fetiche” de Flick neste ano de 2022 pelas capacidades físicas na frente de ataque e pela capacidade de emprestar à equipa algo na dimensão física que mais nenhum avançado consegue dar e continua a mostrar a opção acertada que o antigo técnico do Bayern tomou: entrou, mexeu com a frente ofensiva mesmo num estilo de vez em quando trapalhão, desgastou os centrais contrários e mostrou que não é nenhum tosco no lance do empate: Niclas Füllkrug, avançado do Werder Bremen, já tem 29 anos e só um par de internacionalizações mas chegou a tempo de resgatar a Alemanha.

A sentença

  • O grupo continua completamente em aberto para aquilo que possa acontecer na última jornada. No caso da Espanha, um empate com a Costa Rica garante sempre a passagem aos oitavos, uma vitória assegura o primeiro lugar no grupo e uma derrota pode acabar em eliminação se a Costa Rica também ganhar. No lado da Alemanha, as contas são mais fáceis de fazer: tem de ganhar de forma obrigatória aos costa-riquenhos e esperar que o Japão perca com a Espanha (ou então, caso marque muitos golos diante dos ticos), que os nipónicos não passem de um empate no encontro frente à Roja.

A mentira

  • A proximidade dos estádios é uma realidade correta mas de certa forma parcial quando o Al Bayt entra aqui ao barulho. É claro que nunca houve um Mundial como este, todos os últimos obrigavam sempre a viagens de avião e a possibilidade de fazer dois encontros no mesmo dia era inexistente, mas não haver o cuidado de organizar todos os carros e autocarros entre organização e não organização para que uns fossem para uns parques e outros para outros pode complicar uma chegada que era tudo menos em cima. Tendo em conta que haverá mais decisões neste imponente recinto, será algo a rever.