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O que foi isto, Motomami Rosalía? Uma mulher-furacão em estado de graça, com Lisboa a seus pés

Este artigo tem mais de 2 anos

Este domingo à noite, a Altice Arena esperava-a a rebentar pelas costuras. Rosalía provou: também ao vivo consegue hoje ser tudo e de todas as maneiras, emotiva e espalha-brasas, sempre arrebatadora.

A cantora espanhola atuou este domingo em Lisboa, na Altice Arena, dois dias depois de ter estado em Braga, no âmbito da digressão de apresentação do seu álbum 'Motomami'
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A cantora espanhola atuou este domingo em Lisboa, na Altice Arena, dois dias depois de ter estado em Braga, no âmbito da digressão de apresentação do seu álbum 'Motomami'

Marisa Cardoso / Observador

A cantora espanhola atuou este domingo em Lisboa, na Altice Arena, dois dias depois de ter estado em Braga, no âmbito da digressão de apresentação do seu álbum 'Motomami'

Marisa Cardoso / Observador

Tudo em volta é de um cuidado absoluto. A cenografia. A realização, a transpor a melhor linguagem televisiva e digital para a música ao vivo — particularmente importante quando em muitos pontos da plateia em pé, a visibilidade para o palco é reduzida (em algumas áreas do recinto, isto é até eufemismo). Os movimentos de um grupo de oito bailarinos. Tudo isso impressiona, mas durante mais ou menos duas horas, torna-se praticamente impossível tirar os olhos dela, Rosalía Vila Tobella, pouco mais de 160 centímetros de talento e arrojo, balanço e vozeirão, ginga e emoção, desbunda eufórica e contenção.

Quando o concerto na Altice Arena da grande coqueluche da atual música espanhola (da música pop?) termina, um dia depois da atuação em Braga, é aos versos de “Saoko”, a primeira canção sua que lhe ouvimos nesta noite de domingo, que regressamos. Em particular aos “yo me transformo” repetidos incessantemente — e ainda mais particularmente a uma declaração em particular:

Soy toda’ las cosa’
Yo me transformo

Talvez em nenhum verso de nenhuma outra canção Rosalía se revele tão bem quanto aí — desvendando, por arrasto, o que a torna tão inclassificável, tão magnética, arrebatadora e transversal, cativando gente tão diferente entre si, conquistando fãs imensamente distintos uns dos outros. É que Rosalía parece empenhada em ser mesmo todas as coisas, tudo de todas as maneiras, fogo e gelo, humana e popstar, motomami das vielas mal afamadas e baladeira-derrete-corações-indies. O mais surpreendente? Consegue-o sempre com brilhantismo, pondo milhares a invejá-la, a sonhar ser um bocadinho assim por uns minutos, a suspirar por ela de coração aberto.

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Este domingo, vimo-lo bem na Altice Arena. Vimos (em “De Plata”) a Rosalía rocker, guitarra a ouvir-se nas colunas, segurando o microfone fixo no suporte, de olhar transgressor voltado para a câmara, cabelo a voar ao ritmo do riff antes de abrir a goela para nos atropelar a todos. Vimos a Rosalía mandachuva do novo baile latino, mil movimentos a dançar engenhosamente ao som da música, mão esquerda a segurar o microfone e mão direita irrequieta a comandar o nervo rítmico, com a atitude de proto-rapper que avança prego a fundo a querer levar tudo à frente. E vimos a Rosalía abala corações, a centrar tudo naquela voz de alcance inigualável, curvas e contra-curvas de emoção, ao serviço de canções que em alguns momentos conseguem o que parece impensável: calar a multidão de fãs histéricos e em êxtase para lhe ouvir as respirações, o canto tão impositivo que exige silêncio.

Marisa Cardoso

Em 2019, no festival Primavera Sound do Porto, vimo-lo mais a espaços: alguns vislumbres, uma canção a capella aqui, um ritmo de bailarico contagiante acolá, do seu enorme talento e da sua transição dos discos Los Ángeles (flamenco) e El mal querer (flamenco renovado e ritmado com andamentos pop, presentes e imaginativos) para uma expansividade maior, mais confiante e refrescantemente desavergonhada, notória então em canções como “Aute cuture” e “Con Altura”.

Este domingo, porém, vimos outra coisa: uma Rosalía em completo estado de graça, mais livre de espartilhos, com um corpo de canções atualizado e mais condizente com a sua atitude motomami, com essa capacidade quase desconcertante — por tão invulgar — de se “transformar” sem que nos pareça pessoas diferentes, sem que essas máscaras artísticas nos pareçam máscaras forjadas.

Em “Saoko”, canção com que arranca depois das colunas ribombarem com o noise da banda feminina e japonesa de punk Ni Hao (também piscadela de olho ao imenso mercado asiático?), “Bizcochito”, “Linda” (dueto com a dominicana Tokischa), na irresistível “Despechá” (que põe a Altice Arena a dançar como nenhuma outra) em “Con Altura”, com que se despede antes de regressar para o encore, e em “Chicken Teriyaki”, com que arranca depois para esse encore, Rosalía é a rainha da festa, uns pós de reggaeton, outros de trap, ritmos cozinhados e unidos com o instinto de quem conhece a receita certa para não deixar ninguém parado.

E depois há outras canções, que trazem outras nuances e curvas, algumas remetendo para uma espécie de nova soul/R&B eletrónica e latinoamericana, outras trazendo um caos industrial e uma massa de som que só lhe destacam a voz — é que a voz parece sobrepor-se aí à confusão e ao ruído caótico, apresentar-se impenetrável e inabalável, como se resistisse a um mundo a desfazer-se em redor.

Um mundo novo rendido a um baile latino: Rosalía, a conquistadora

A belíssima “Candy”, por exemplo, merece destaque. Tal como a menos explosiva e acelerada na festa (face a outros êxitos como “Despechá” e “Con Altura”), mais insinuante e adocicada, “La Fama”, que traz na letra uma revisão crítica e distanciada, muito perspicaz, do estatuto de celebridade. Assim como o canto que acompanha de guitarra nos braços, desaguando em emoção a transbordar de autotune, quando entoa “Dolerme”, passando pelo flamenco, mais clássico (não na letra) de “Bulerías” e mais renovado da espantosa “Malamente” e de “Pienso en Tu Mirá”.

É um alinhamento quase sem falhas, este, digno de uma compositora e cantora já com um corpo de canções à prova de bala. Poderá haver quem se tenha encantado mais pelas delicadezas e subtilezas do recolhimento lírico de “G3N15”. Quem se tenha surpreendido pelo espaço dado àquela portentosa voz para que brilhasse numa versão muito peculiar de “Perdóname”, das La Factoría. E dificilmente haverá uma alma na Altice Arena que não se tenha maravilhado com Rosalía a cantar ao piano “Hentai”, balada dolente à Frank Ocean aqui e ali saudavelmente escangalhada por ruído que traz personalidade, cheia de deliciosas insinuações sexuais (te quiero ride / como a mi bike (…) ya te quiero hacer hentai”), ou que não se tenha arrebatado vendo Rosalía cantar o belíssimo poema “Sakura” e a abrir o coração numa carta de despedida a um amor chamada “Como Un G”, em que canta “solo el amor con amor se paga / nada te debo y tú no me debes nada”, prosseguindo daí:

Si no lo puedes tener, mejor dejarlo ir
Qué pena cuando quieres algo pero Dios tiene otros planes pa ti
No me enamoro de nadie, jurao, como un G
Ni escribo canciones de amor, pero en esta me doblo por ti

Tudo isto antes de concluir, com tiradas de uma sabedoria poética que 20 e tal anos (crescidos) de experiência de vida e desamores vários nitidamente já lhe deram:

Que siempre te querré aunque no te tenga
Que siempe me tendrá’ aunque no me quiera’ 

Marisa Cardoso

Rosalía nunca se poupou, entre capacetes retirados, uma trotinete conduzida enquanto cantava, óculos escuros colocados para as câmaras e palavras múltiplas de agradecimento e carinho dedicadas a Lisboa e Portugal, sítio precioso em que sente “muito amor” (“obrigado por serem tão carinhosos comigo”), fazendo referência à beleza e emoção do fado e estabelecendo aí uma ponte com o flamenco. Enfim, ainda levou fãs das primeiras filas para o palco, partilhou o microfone com os seus motohijos também nas primeiras filas (cedendo-lhes o microfone), trouxe “papi chulo” e batidas da “Gasolina” para as colunas do antigo Pavilhão Atlântico, ajoelhou-se, deitou-se, levantou-se, cantou de cócoras e em pé, fez 30 por uma linha sem parar quieta.

Cansava só de ver, mas serviu para reforçar visualmente uma impressão: a de que Rosalía é hoje uma artista pop imparável, sem grande paralelo, cantora e compositora que encontrou a receita para aliar aquela familiaridade ao ouvido e ao corpo que convida à dança e que move multidões com a singularidade que a torna única. A fórmula é infalível: já ouvimos isto, mas nunca ouvimos isto assim.

Se há uns anos alguém arriscasse que em 2022 dois dos concertos mais marcantes, impressionantes e lotados do ano em Portugal seriam de artistas espanhóis, é provável que quem estivesse a ouvir rebolasse a rir, considerando a previsão um disparate. Uma Altice Arena a rebentar pelas costuras, extática, a cantar letra a letra, palavra a palavra, canção a canção, músicas espanholas? Ora aí estava uma aparente impossibilidade histórica. Essa história, porém, fez-se mesmo: depois do teatro-concerto arrebatador de C. Tangana no verão, levámos este domingo com a nova dona disto tudo, a rainha do melhor baile novo, Rosalía Vila Tobella. Que volte depressa.

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