Tudo em volta é de um cuidado absoluto. A cenografia. A realização, a transpor a melhor linguagem televisiva e digital para a música ao vivo — particularmente importante quando em muitos pontos da plateia em pé, a visibilidade para o palco é reduzida (em algumas áreas do recinto, isto é até eufemismo). Os movimentos de um grupo de oito bailarinos. Tudo isso impressiona, mas durante mais ou menos duas horas, torna-se praticamente impossível tirar os olhos dela, Rosalía Vila Tobella, pouco mais de 160 centímetros de talento e arrojo, balanço e vozeirão, ginga e emoção, desbunda eufórica e contenção.
Quando o concerto na Altice Arena da grande coqueluche da atual música espanhola (da música pop?) termina, um dia depois da atuação em Braga, é aos versos de “Saoko”, a primeira canção sua que lhe ouvimos nesta noite de domingo, que regressamos. Em particular aos “yo me transformo” repetidos incessantemente — e ainda mais particularmente a uma declaração em particular:
Soy toda’ las cosa’
Yo me transformo
Talvez em nenhum verso de nenhuma outra canção Rosalía se revele tão bem quanto aí — desvendando, por arrasto, o que a torna tão inclassificável, tão magnética, arrebatadora e transversal, cativando gente tão diferente entre si, conquistando fãs imensamente distintos uns dos outros. É que Rosalía parece empenhada em ser mesmo todas as coisas, tudo de todas as maneiras, fogo e gelo, humana e popstar, motomami das vielas mal afamadas e baladeira-derrete-corações-indies. O mais surpreendente? Consegue-o sempre com brilhantismo, pondo milhares a invejá-la, a sonhar ser um bocadinho assim por uns minutos, a suspirar por ela de coração aberto.
Este domingo, vimo-lo bem na Altice Arena. Vimos (em “De Plata”) a Rosalía rocker, guitarra a ouvir-se nas colunas, segurando o microfone fixo no suporte, de olhar transgressor voltado para a câmara, cabelo a voar ao ritmo do riff antes de abrir a goela para nos atropelar a todos. Vimos a Rosalía mandachuva do novo baile latino, mil movimentos a dançar engenhosamente ao som da música, mão esquerda a segurar o microfone e mão direita irrequieta a comandar o nervo rítmico, com a atitude de proto-rapper que avança prego a fundo a querer levar tudo à frente. E vimos a Rosalía abala corações, a centrar tudo naquela voz de alcance inigualável, curvas e contra-curvas de emoção, ao serviço de canções que em alguns momentos conseguem o que parece impensável: calar a multidão de fãs histéricos e em êxtase para lhe ouvir as respirações, o canto tão impositivo que exige silêncio.
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Marisa Cardoso
Em 2019, no festival Primavera Sound do Porto, vimo-lo mais a espaços: alguns vislumbres, uma canção a capella aqui, um ritmo de bailarico contagiante acolá, do seu enorme talento e da sua transição dos discos Los Ángeles (flamenco) e El mal querer (flamenco renovado e ritmado com andamentos pop, presentes e imaginativos) para uma expansividade maior, mais confiante e refrescantemente desavergonhada, notória então em canções como “Aute cuture” e “Con Altura”.
Este domingo, porém, vimos outra coisa: uma Rosalía em completo estado de graça, mais livre de espartilhos, com um corpo de canções atualizado e mais condizente com a sua atitude motomami, com essa capacidade quase desconcertante — por tão invulgar — de se “transformar” sem que nos pareça pessoas diferentes, sem que essas máscaras artísticas nos pareçam máscaras forjadas.
Em “Saoko”, canção com que arranca depois das colunas ribombarem com o noise da banda feminina e japonesa de punk Ni Hao (também piscadela de olho ao imenso mercado asiático?), “Bizcochito”, “Linda” (dueto com a dominicana Tokischa), na irresistível “Despechá” (que põe a Altice Arena a dançar como nenhuma outra) em “Con Altura”, com que se despede antes de regressar para o encore, e em “Chicken Teriyaki”, com que arranca depois para esse encore, Rosalía é a rainha da festa, uns pós de reggaeton, outros de trap, ritmos cozinhados e unidos com o instinto de quem conhece a receita certa para não deixar ninguém parado.
E depois há outras canções, que trazem outras nuances e curvas, algumas remetendo para uma espécie de nova soul/R&B eletrónica e latinoamericana, outras trazendo um caos industrial e uma massa de som que só lhe destacam a voz — é que a voz parece sobrepor-se aí à confusão e ao ruído caótico, apresentar-se impenetrável e inabalável, como se resistisse a um mundo a desfazer-se em redor.
Um mundo novo rendido a um baile latino: Rosalía, a conquistadora
A belíssima “Candy”, por exemplo, merece destaque. Tal como a menos explosiva e acelerada na festa (face a outros êxitos como “Despechá” e “Con Altura”), mais insinuante e adocicada, “La Fama”, que traz na letra uma revisão crítica e distanciada, muito perspicaz, do estatuto de celebridade. Assim como o canto que acompanha de guitarra nos braços, desaguando em emoção a transbordar de autotune, quando entoa “Dolerme”, passando pelo flamenco, mais clássico (não na letra) de “Bulerías” e mais renovado da espantosa “Malamente” e de “Pienso en Tu Mirá”.
É um alinhamento quase sem falhas, este, digno de uma compositora e cantora já com um corpo de canções à prova de bala. Poderá haver quem se tenha encantado mais pelas delicadezas e subtilezas do recolhimento lírico de “G3N15”. Quem se tenha surpreendido pelo espaço dado àquela portentosa voz para que brilhasse numa versão muito peculiar de “Perdóname”, das La Factoría. E dificilmente haverá uma alma na Altice Arena que não se tenha maravilhado com Rosalía a cantar ao piano “Hentai”, balada dolente à Frank Ocean aqui e ali saudavelmente escangalhada por ruído que traz personalidade, cheia de deliciosas insinuações sexuais (te quiero ride / como a mi bike (…) ya te quiero hacer hentai”), ou que não se tenha arrebatado vendo Rosalía cantar o belíssimo poema “Sakura” e a abrir o coração numa carta de despedida a um amor chamada “Como Un G”, em que canta “solo el amor con amor se paga / nada te debo y tú no me debes nada”, prosseguindo daí:
Si no lo puedes tener, mejor dejarlo ir
Qué pena cuando quieres algo pero Dios tiene otros planes pa ti
No me enamoro de nadie, jurao, como un G
Ni escribo canciones de amor, pero en esta me doblo por ti
Tudo isto antes de concluir, com tiradas de uma sabedoria poética que 20 e tal anos (crescidos) de experiência de vida e desamores vários nitidamente já lhe deram:
Que siempre te querré aunque no te tenga
Que siempe me tendrá’ aunque no me quiera’
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Marisa Cardoso
Rosalía nunca se poupou, entre capacetes retirados, uma trotinete conduzida enquanto cantava, óculos escuros colocados para as câmaras e palavras múltiplas de agradecimento e carinho dedicadas a Lisboa e Portugal, sítio precioso em que sente “muito amor” (“obrigado por serem tão carinhosos comigo”), fazendo referência à beleza e emoção do fado e estabelecendo aí uma ponte com o flamenco. Enfim, ainda levou fãs das primeiras filas para o palco, partilhou o microfone com os seus motohijos também nas primeiras filas (cedendo-lhes o microfone), trouxe “papi chulo” e batidas da “Gasolina” para as colunas do antigo Pavilhão Atlântico, ajoelhou-se, deitou-se, levantou-se, cantou de cócoras e em pé, fez 30 por uma linha sem parar quieta.
Cansava só de ver, mas serviu para reforçar visualmente uma impressão: a de que Rosalía é hoje uma artista pop imparável, sem grande paralelo, cantora e compositora que encontrou a receita para aliar aquela familiaridade ao ouvido e ao corpo que convida à dança e que move multidões com a singularidade que a torna única. A fórmula é infalível: já ouvimos isto, mas nunca ouvimos isto assim.
Se há uns anos alguém arriscasse que em 2022 dois dos concertos mais marcantes, impressionantes e lotados do ano em Portugal seriam de artistas espanhóis, é provável que quem estivesse a ouvir rebolasse a rir, considerando a previsão um disparate. Uma Altice Arena a rebentar pelas costuras, extática, a cantar letra a letra, palavra a palavra, canção a canção, músicas espanholas? Ora aí estava uma aparente impossibilidade histórica. Essa história, porém, fez-se mesmo: depois do teatro-concerto arrebatador de C. Tangana no verão, levámos este domingo com a nova dona disto tudo, a rainha do melhor baile novo, Rosalía Vila Tobella. Que volte depressa.