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D. R.

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Um mundo novo rendido a um baile latino: Rosalía, a conquistadora

Cada vez mais lançada nos EUA, piscando o olho também à Ásia, a espanhola Rosalía lança o novo disco "Motomami". Que álbum é este e o que pode mudar na pop mundial? Já o ouvimos.

O mundo está de pernas para o ar, portanto não há altura mais apropriada para que pareça lógico aquilo que acontece entre a faixa cinco e a faixa seis de Motomami — o novo disco da cantora espanhola, compositora e nova dona disto tudo Rosalía Vila Tobella, editado esta sexta-feira, 18 de março, com pompa, circunstância e vontade de conquistar a América toda outra vez.

Num momento estamos a ouvir uma batida reggaeton, a arrancar deslizando sem vergonha numa poça de virgem extra. O corpo balança mais rápido do que o temeroso cérebro e Rosalía mandachuva canta como se o mundo fosse uma noz: “solo quiere cash, yo le doy mi dinero”. E com ela vamos à boleia, para um baile em discotecas de duvidoso “bom gosto” (o sacrilégio!), shots em cima da mesa a evaporar o pudor. E Rosalía, imparável, segue sempre no centro da festa, agora a piscar o olho à Ásia que (ainda para mais) é nestes tempos uma potência pop:

Pa’ ti naki
chicken teriyaki

De repente a faixa muda, entramos em “Hentai” (#6) e parecemos estar na manhã seguinte. Mas é uma manhã seguinte estranha: o som é de uma balada dolente à Frank Ocean (não por acaso, presente nas sessões de gravação do disco), soul latina-americana eletrónica e cantada com uma solenidade emocionada. Só que alto lá, afinal a canção vai buscar nome a uma espécie de pornografia japonesa (em anime), à noção de perversidade legítima no desejo? E Rosalía canta-nos assim, como se entoasse uma fábula de amor moderno:

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Te quiero ride como a mi bike
Hazme un tape modo Spike
Yo la batí hasta que se montó
Segundo es chingarte, lo primero e’ Dios

Talvez seja aqui que senhoras e senhores de óculos na ponta do nariz, seríssimos, se vão escandalizar, franzir o sobrolho, fazer um rosto de nojo: como assim, “em primeiro lugar Deus”, em segundo, enfim, dar umas cambalhotas contigo?

Se por esta altura ainda desejar continuar a ouvir o disco, tem um estômago suficientemente forte para seguir e digerir a viagem. Uma jornada naquilo que a própria Rosalía descreveu, por sinal exemplarmente, como uma “montanha-russa”. A expressão, usou-a recentemente em entrevista ao jornal espanhol El País. Disse então Rosalía: “O álbum é como uma montanha-russa. Vai para cima e para baixo. É assim que me sinto, às vezes”.

Quando aqui escrevemos que “montanha-russa” é uma expressão exemplar para descrever Motomami, é porque tudo isto parece demasiado frenético, um álbum cheio de curvas e contra-curvas, passes e fintas de letra como logo a seguir carrinhos impetuosos, momentos (mais raros) de comover as pedras da calçada, outros (mais constantes) de levantar os ombros, abanar a cabeça e fingirmos que somos todos J Balvin por uns segundos. De mãos dadas: “alta” e “baixa” cultura, bom e mau gosto, emoção e canto de quem tem na voz um dom e um flirt com o reggaeton, o trap e os ritmos dançantes de ruas de má fama.

A capa do novo disco de Rosalía

Motomami soa a um cosmos completo, cheio de imperfeições, delírios de grandeza desconstruídos, ambições desmedidas ridicularizadas, sonhos cândidos narrados. É um mundo novo latino, que de retalhos do passado tenta, no presente, construir um futuro.

J Balvin, estrela do reggaeton que gravou com Rosalía o super-êxito pop “Con Altura”, resumiu bem o papel de Rosalía na nova tapeçaria da pop mundial, em declarações à Vice: “Tem um conhecimento extraordinário e único da história da música latina. E é capaz de, de forma consistente, pegar nos melhores elementos do passado e recontextualizá-los de modo a que pareçam futuristas, sem deixarem de honrar as raízes dessa música”. Seguimos viagem.

Aos 28 anos, Rosalía, nascida numa pequena cidade da Catalunha, é uma das estrelas da pop mundial

As pérolas (canção a canção), o TikTok e a América na mira

Para trás ficaram várias coisas. Desde logo, o mito: o talento prodigioso que, (reza a biografia) pelo mérito e não por amiguismos, irrompeu na indústria musical; a mulher que ainda criança, com apenas oito anos, abriu a goela, cantou pela primeira vez em público e deixou uns quantos familiares de olhos marejados em lágrimas.

Depois, foi-se a vontade de ter o consenso da crítica, os “alternativos” e os “clássicos” a seus pés. Primeiro com Los Ángeles, álbum em que reinterpretava o cancioneiro flamenco, depois em El Mal Querer, em que renovava esse legado e património musical espanhol colocando-o em diálogo com a pop do presente e com ritmos novos de quem procurava o futuro, Rosalía ainda não rompera inteiramente com um campo sonoro relativamente consensual.

Rosalía, a musa espanhola do flamenco 2.0

Tudo mudou depois de El Mal Querer: o mergulho e a submersão na estética do reggaeton e as colaborações com J Balvin, Travis Scott, Ozuna, Bad Bunny, The Weeknd e outras figuras planetárias da música latina, por um lado, e da pop anglófona e norte-americana, por outro, fizeram de Rosalía uma outra artista, maior, porventura menos consensual entre críticos mas com muito maior alcance mediático e muito mais ouvintes.

Não é por acaso que o novo disco, Motomami, será o primeiro de Rosalía editado na Columbia Records, divisão norte-americana do grupo Sony onde estão artistas como Beyoncé, Bruce Springsteen, Adele ou AC/DC. Também não será mero acaso a ligação cada vez mais estreita de Rosalía com a rede social TikTok, a ponto de esta sexta-feira estar previsto um concerto exclusivo de apresentação do álbum precisamente no TikTok – curiosamente à 1h da madrugada do seu país, Espanha (0h de Lisboa), mas em prime time nos fusos horários dos EUA e da América Latina.

Não se pode dizer que a vontade de conquistar o mundo seja nova. Num texto recente publicado pelo jornal digital El Diario, em que são citadas várias passagens do livro de ensaios “La Rosalía. Ensayos sobre el buen querer”, é contada uma história sobre os planos da cantora quando tinha acabado de vender meras 8 mil cópias com o disco Los Ángeles, o primeiro da sua discografia. À época, lê-se, um dos planos já era “fazer música de qualidade, mas comercial e capaz de se tornar num êxito global”.

De algum modo, Motomami parece uma espécie de compromisso a meio caminho entre os singles pop de Rosalía que conquistaram o mundo nos anos mais recentes – a parceria com Ozuna “Yo x Ti, Tu x Mi”, o dueto com Travis Scott “TKN” e, acima de todos os outros na popularidade, o estrondo “Con Altura” com J. Balvin – e a ideia de uma artista popular mas divergente da pop mainstream, capaz de fazer discos coesos e com um fio condutor.

Desta vez, em vez do flamenco reinventado, são o reggaeton (sobretudo) e a bachata que dominam os andamentos rítmicos – ainda que se note espaço para algum diálogo com o flamengo, com o trap, com a pop industrial e com a soul eletrónica. Neste caldeirão, porém, Rosalía parece conseguir manter-se minimamente original e com intenções artísticas percetíveis: as batidas e os sons soam relativamente novos, dando a impressão de que já os ouvíramos noutros tons mas nunca exatamente assim, e o álbum (feito ao longo de três anos) não soa a mera coleção de singles dispersos.

É um disco nitidamente despudorado, que não pede licença a ninguém nos ritmos e palavras e que, inspirado na ideia da figura motomami (uma homenagem à mãe mas também à força feminina e à aceitação das dualidades entre luz e sombra, perversidade e inocência, fragilidade e força destrutiva), reflete sobre fama, dinheiro, sexo, mudanças, vida vivida a um ritmo vertiginoso, contradições.

É difícil prever a aceitação que o disco terá ou o consenso que conseguirá ou não lograr, mas é fácil prever que Rosalía será cada vez mais uma estrela pop mundial, que quer ombrear em mediatismo e popularidade com as grandes figuras da música cantada em inglês.

Não é bem certo desde quando é que brega passou a ser cool, ou desde quando é que a música latina passou a ter ambições de durar no tempo, de deixar de ser um fenómeno efémero (como o foi o poderíssimo êxito “Gasolina” de Daddy Yankee) e de deixar de recorrer ao inglês (como Shakira) e, sem vergonhas, conquistar pela diferença. O que se percebe é que na pop essa ousadia já tem descendentes (C. Tangana) mas continua a ter em Rosalía uma figura de proa.

Motomami, por sinal, tem curvas suficientes para agradar a públicos distintos. Mas tem, sobretudo, canções impactantes. Arranca logo com “Saoko”, canção sobre transformações (“Soy todas las cosas, yo me transformo”), Rosalía a cantar que “o Frank [Ocean]” lhe disse para “abrir o mundo como uma noz”, o ritmo a soar a boa festa de tunning manhosa antes da canção escangalhar-se nas suas voltas, ritmos e contra-ritmos, tons industriais e esquizóides, Rosalía com luvas de boxe:

Fuck el estilo
Fuck el stylist
Fuck el estilo

Entre a bachata insinuante “La Fama”, com o comparsa The Weeknd num diálogo sobre o mediatismo (“es mala amante la fama / y no va a quererte de verdade / es demasiado traicionera / y como ella viene se te va”), e a já referida “Chicken Teriyaki” (quinta faixa), ouvimos “Buleria”. Não era preciso escutarmos Rosalía a cantar flamenco para nos recordarmos que é uma espantosa vocalista, alguém capaz de cantar tudo e mais alguma coisa – mas é sempre bom regressar onde fomos felizes (El Mal Querer) e a esta nova-velha Espanha em que percussões a imitar palmas, vozes de fundo cheias de vida e palavras sobre “Versace” soam simultaneamente clássicas e modernas.

De “Hentai” já por aqui falámos, mas vale a pena desvendar mais um truque estupendo de uma grande canção: a forma como uma espécie de caos industrial, ruidoso, se abate sobre o tema na ponta final sem que Rosalía fique com um arranhão, sem que deixe de cantar impávida e serena — como se o mundo em seu redor não estivesse em convulsão (sonora).

Nas 11 faixas seguintes (são 16) também há pérolas por descobrir. Desde logo, a inclassificável “Bizcochito” (de onde veio isto?), a mais nebulosa, tensa e baladeira “Genis” (com que voz, Rosalía!) e a mais clássica e tradicional “Delirio de Grandeza”. Mas também a balada movida a autotune e tristeza “Como un G”, constatando a efemeridade das relações e a dureza da separação (“No me enamoro de nadie, jurao, como un G / ni escribo canciones de amor pero en esta me doblo por ti”) e a despedida “Sakura”, com a emoção na voz a ribombar, palavras a reter (“Ser una popstar / nunca te dura”) e com versos poéticos para a despedida:

Solo hay riesgo si hay algo que perder
Las llamas son bonitas porque no tienen orden
Y el fuego es bonito porque todo lo rompe

Com Motomami, Rosalía reinventa-se, transforma-se como a borboleta (“mariposa”) que escolheu como símbolo do disco, desvenda-se sem pudores e chama o mundo para o baile. Depois disto não podem sobrar dúvidas: a dança agora é definitivamente latina.

No Porto, Rosalía foi flamenco-pop, chunga-clássica, emergente-prodigiosa

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