Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Era inevitável e o próprio Tite, na conferência de imprensa antes da partida com a Coreia do Sul, quase que se penitenciou por não ter começado por falar de Pelé. Quando se pronunciou, recordou que o antigo astro que foi três vezes campeão mundial entre inúmeros recordes na principal prova de seleções foi o único capaz de fazer com que ficasse a transpirar das mãos e de pulsação acelerada só com a ideia de cumprimentá-lo. E o sorriso rasgou de vez no final da coletiva quando o reputado Galvão Bueno referiu no preâmbulo de uma pergunta que trocava mensagens com a velha glória e que uma das coisas que mais o entusiasmavam nesta fase era ver a canarinha (apesar do nervosismo). Mesmo omnipresente, não poderia ser mais recordado.

Se agora Pelé continua internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, Doha faz com que estivesse aqui ao lado. Antes do encontro do Brasil frente aos Camarões, uma enorme tela amarela no Estádio 974 deixava a frase “Pelé, recupera depressa”. E as evocações de um dos melhores de todos os tempos multiplicavam-se um pouco por todo o lado nas principais zonas de atrações turísticas da cidade. “Tenho a intenção de não jogar mais Mundiais mas acho que nunca tenho essa sorte”, referiu naquele dia de 1966 em que Eusébio e companhia deitaram por terra o sonho de chegar ao tricampeonato. Não foi aí, viria a ser quatro anos depois. Porquê? Mesmo que ele não quisesse, o Mundial ia sempre ter consigo. De certa forma, essa é também a história de Neymar na prova. E não há no Qatar mais figura tão presente do que o avançado.

Em 1958, eu caminhava pelas ruas pensando em cumprir a promessa que fiz ao meu pai. Sei que hoje muitos fizeram promessas parecidas e também vão em busca da sua primeira Copa do Mundo. Assistirei ao jogo do hospital e estarei torcendo muito por cada um de vocês. Boa sorte!”, escreveu Pelé nas redes sociais antes do encontro frente à Coreia do Sul.

Depois do fatídico jogo de estreia em que sofreu nove faltas e saiu com o tornozelo inchado como se tivesse ali uma bola de golfe, Ney falhou as partidas com a Suíça e os Camarões mas voltava agora para o arranque do mata-mata frente a uma Coreia do Sul de Paulo Bento (único treinador “estrangeiro” ainda em prova) que operou o milagre da qualificação frente a Portugal mas corria o risco de pagar por todo o desgaste a que a façanha obrigou. Também pela ligação ao PSG, não há mais presente-não-presente do que ele em tudo o que são anúncios. No metro, nos autocarros, na rua. Até uma simples ida a uma corrida de camelos leva a que se fale nele, ou não tivesse sido o convidado de honra numa prova só para si em 2019. Agora, era tempo de marcar presença de novo em campo, na sequência de 12 longos dias de trabalho de recuperação.

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Ricardo Rosa, que trabalha com o jogador de 30 anos há mais de uma década, foi apelando ao milagre de Jesus da ressurreição de Lázaro como forma de transformar todo aquele esforço num objetivo divino de ir à luta pela primeiro título mundial do Brasil duas décadas depois e logo numa competição que foi organizada pelo Japão e… pela Coreia do Sul. “Na minha vida nada foi fácil. Sou filho do Deus dos impossíveis e a minha fé é infinita”, escrevera nas redes sociais pouco depois da lesão. E Neymar, um todo solidário que antes do jogo quis ir cumprimentar um adulto e uma criança de cadeira de rodas e que após marcar quis dar um abraço ao lesionado Alex Telles, como que deu o mote no regresso para soltar todos os artistas numa sinfonia de bola ao longo da primeira parte que mostrou o quão temível pode ser este Brasil este Mundial.

Para se ter noção do autêntico “atropelo” que foi a primeira parte, o Brasil necessitou apenas de 36 minutos para marcar mais golos do que tinha feito até aqui no Mundial em 270 mais descontos (aliás, a canarinha era de longe a equipa que mais remates precisava ter para marcar no final da fase de grupos). Foi quase literal, do oito ao 80: Vinícius Júnior inaugurou o marcador após uma grande jogada de Raphinha pela direita com cruzamento a atravessar toda a área (7′), Neymar não perdoou de grande penalidade após uma distração fatal de Jung Woo-Young sobre Richarlison (13′), Richarlison aumentou depois para 3-0 numa jogada daquelas que Jorge Jesus descreve como bilhar e que teve assistência de Thiago Silva após alguns passes de primeira (27′) e Lucas Paquetá fez o 4-0 ao intervalo numa jogada entre Neymar e Vini (36′).

A Coreia do Sul ainda teve as suas oportunidades, com Hwang a obrigar Alisson à sua primeira defesa neste Mundial (e que defesa fantástica) e a repetir a dose pouco depois da meia hora mas foi o Brasil que voltou a acabar por cima, com uma capacidade invisível de “estrangular” o adversário que os números descodificam da melhor forma: é a seleção a par da Argentina que demora menos tempo a recuperar a bola. Até pode parecer algo pouco importante mas é o que faz a diferença num conjunto com ADN muito ofensivo.

A segunda parte só não seria propriamente um jogo treino contra os vermelhos porque não está no sangue dos sul-coreanos nem de Paulo Bento o conceito de desistência. E até foi Son a deixar o primeiro aviso após o intervalo, com uma arrancada a aproveitar um erro de Marquinhos que mais uma vez voltou a ser travada por Alisson Muro Becker (47′). Era o mote para uma retoma com resultados? O Brasil fez questão de dizer que não e pouco depois foi Kim Seung-gyu a fazer duas grandes defesas a remates de Raphinha (55′ e 62′). Nem mesmo assim a Coreia do Sul cedeu em termos anímicos e mentais, como que prolongando a alegria que vinha das bancadas, e Paik Seung-ho reduziu mesmo com um grande remate de fora da área (76′).

A pérola

  • Raphinha foi sempre um autêntico quebra-cabeças no Brasil, Vinícius Júnior foi a referência em mais de metade das entradas brasileiras no último terço, Casemiro mostrou que em forma é um dos melhores 6 da atualidade e Alisson, de forma mais ou menos discreta, travou várias oportunidades de golo que podiam ter mudado (ainda que de forma ligeira) a história do jogo. No entanto, e mesmo não tendo feito a sua melhor exibição esta temporada, uma canarinha com Neymar é logo outra coisa. Em campo, nas bancadas, no espectáculo, na organização defensiva contrária. Ou seja, a melhor forma de definir o que é um craque. E tudo depois de uma paragem de 11 dias por questões físicas…

O joker

  • A defesa do Brasil tem sentido algumas dificuldades sobretudo pelas lesões de Danilo, Alex Santos e Alex Telles (que não joga mais este Mundial), o ataque é ter os melhores disponíveis e está feito com várias alternativas de qualidade no banco, o meio-campo continua a ser o grande fator de discussão em torno das opções iniciais. Fred já jogou ao lado de Casemiro, Bruno Guimarães é talvez o mais pedido, Lucas Paquetá mostrou que é um craque e consegue “colar” setores da melhor maneira.

A sentença

  • Com o regresso às vitórias, o Brasil segue para os quartos onde irá fazer o terceiro em cinco jogos contra equipas europeias (desta vez a Croácia, que eliminou o Japão nas grandes penalidades após os dois triunfos com Sérvia e Suíça). Já a Coreia do Sul acaba por sair, deixando o continente asiático sem qualquer representação – à exceção de Marrocos, há apenas europeus e os dois sul-americanos…

A mentira

  • Depois daquilo que fez na fase de grupos, a imagem que a Coreia do Sul deixou na primeira parte não teve nada a ver com o resto do Mundial e acaba por tirar lustro às exibições com o Uruguai (0-0), com o Gana (2-3) e com Portugal (2-1). O Brasil teve mérito na forma como explorou todos os metros quadrados de terreno não ocupados, os sul-coreanos tiveram um enorme demérito na forma como se foram deixando desconstruir, nunca recuperando em termos anímicos dos dois golos em 13 minutos.