A dificuldade de contactos sociais imposta pela pandemia levou os jovens a perderem capacidades socioemocionais, uma situação espelhada no aumento das situações de conflito, como as lutas, assim como da tristeza, insegurança e medo.
Adolescentes portugueses estão mais infelizes, especialistas pedem mais respostas
Segundo Tânia Gaspar, coordenadora do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC/OMS), feito em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e que vai ser divulgado esta quarta-feira, “como os jovens acabaram por estar muito isolados, por estar menos na relação uns com os outros, não tiveram tanta oportunidade de desenvolver essas competências”.
“Como eles foram continuando a crescer, de uma perspetiva social, houve uma exigência contínua. Continua a haver uma exigência de que eles tenham essas competências. Então, muitas vezes, eles sentem-se inadequados e não sabem reagir“, explicou a coordenadora desta investigação, feita pela equipa “Aventura Social” do ISAMB/Universidade de Lisboa, em parceria com a Direção-Geral da Saúde (DGS) e a Direção-Geral das Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).
A especialista explicou ainda que o jovem, quando não sabe reagir, acaba por ter uma reação mais agressiva: “Por exemplo, a questão das lutas, que aumentaram, e isso pode ter que ver com o facto de eles não terem tido essas oportunidades de relação”.
“Depois, quando têm uma situação de conflito na escola, têm menos capacidade de parar, analisar a situação e resolvê-la com tranquilidade”, explicou a responsável, acrescentando: “Estes jovens entraram na pandemia, muitos deles, com 12 anos e saíram com 14, ou entraram com 14 e saíram com 16”.
“São alturas do desenvolvimento muito importantes, em que eles deveriam ter estado de uma forma progressiva em contacto com as novas realidades (…) e a ganhar progressivamente a sua autonomia”, insistiu.
Segundo os dados do HBSC/OMS 2022 – que entre 1998 e 2019 foi coordenado pela psicóloga Margarida Gaspar de Matos –, houve um aumento no envolvimento em lutas, de 27,4% em 2018 para 32,3% em 2022, com a escola como o principal local onde estas lutas ocorrem.
Relativamente às expectativas de futuro, também elas caíram de um valor médio de 7,41 em 2018 para 7,10 este ano.
“Eles têm as suas angústias, os seus medos, os seus desejos, os seus sonhos. E tudo isso acabou por ficar adormecido durante este período”, disse a responsável, prosseguindo: “Quando fazemos as nossas atividades diárias, isso é motivado por um projeto, por uma expectativa. E essa expectativa estava tão incerta que isso também desmotivou os jovens, que começaram a pensar “por que é que eu vou estudar?””.
Este clima de incerteza criado pela pandemia – insistiu – “afetou o bem-estar e também a expectativa futura”.
Outra área afetada por esta “intermitência de relações” foi a relação com a família. Os dados indicam que há uma perceção mais negativa do apoio da família e há agora menos refeições em família.
Em relação à qualidade da relação familiar, baixou de um valor médio de 8,55 (em 2018) para 8,10 quatro anos depois. A perceção de apoio familiar também baixou para 22,94 (era 24,12), assim como a facilidade em comunicar com os pais.
Questionada sobre se estas “mazelas” são recuperáveis, diz que sim, “mas não automaticamente”.
“Efetivamente, houve aqui impacto durante dois anos no desenvolvimento, tanto a nível da aprendizagem escolar como a nível da saúde e do desenvolvimento das crianças e jovens”, reconheceu, lembrando que o foco para a recuperação deverá estar, por um lado, na escola, “integrando o desenvolvimento de competências socioemocionais nas várias disciplinas e no percurso no projeto educativo”.
Trata-se de uma área que a especialista diz que deve ser trabalhada de forma transversal nas várias unidades curriculares, “para os jovens perceberem como é que isso tem utilidade”.
“É importante haver cada vez mais uma relação direta entre a matéria [dada nas aulas] e a realidade, que faça sentido para os próprios jovens”, disse a responsável, acrescentando: “Uma das questões será parar e conversar com eles, devolver-lhes estes resultados [do estudo] e perguntar-lhes o que sugerem que possamos fazer – como escola e como sociedade – para melhorar e para que se sintam mais felizes”.
Quase metade dos adolescentes usa a net para fugir a sentimentos negativos
O estudo revelou também que 47,6% dos adolescentes portugueses diz que usa a internet para fugir a sentimentos negativos e 23,9% diz que regularmente não consegue o pensar em nada para além do momento em que poderá usar as redes sociais.
Em relação ao tempo gasto em frente ao ecrã, cerca de 43% dos jovens compartilha ou consulta conteúdo do TikTok, cerca de 39% diz trocar mensagens no WhatsApp e cerca de 37% usa o Instagram duas ou mais horas por dia durante a semana.
Já durante o fim de semana, quase metade (45%) dos jovens diz assistir a séries online, cerca de 43% usa o TikTok e joga jogos online ou offline (40%) duas ou mais horas por dia.
O uso do telemóvel por parte dos adolescentes continua elevado, com um aumento dos jovens que diz usá-lo várias horas por dia (passou de 56,6% em 2018 para 64,5% em 2022). Contudo, os investigadores sublinham o aumento da percentagem de jovens que refere que no seu tempo livre pensa na vida, várias horas por dia (de 33,7% para 38,9%).
“Não podemos dizer que o facto de o uso das novas tecnologias ter aumentado é negativo por si só, porque é natural, as novas tecnologias fazem parte cada vez mais da nossa vida e da vida dos jovens e o que temos de fazer é juntar-nos a eles e fazer com que estes comportamentos sejam saudáveis“, disse à Lusa a coordenadora do estudo, Tânia Gaspar.
A responsável alerta ainda que o problema do uso das novas tecnologias é o facto de “diminuir o uso de competências noutras áreas”.
Os dados mostram igualmente um decréscimo no apoio do grupo de amigos (passou de um valor médio de 21,95 para de 21,70), assim como a qualidade da relação com os amigos (de 8,54 para 8,17).
No sentido inverso, o contacto online aumentou (de 60,8% para 62,4%) com os amigos chegados, com outras pessoas que não são amigos (de 40,7% para 42,3%), com amigos de um grupo mais alargado (de 38,7% para 39,2%) e com amigos que conheceram online (de 18,4% para 20,6%).
A utilização da Internet para fugir a sentimentos negativos aumentou bastante nos jovens portugueses (de 28,6% para 47,6%), assim como os alunos que referem que já tentaram passar menos tempo nas redes sociais e não conseguiram (passou de 26% em 2018 para 32,2% em 2022).
Em declarações à Lusa, Fábio Botelho Guedes, da equipa portuguesa do HBSC/OMS e Aventura Social/ISAMB/Universidade de Lisboa, aponta alguns “desafios”, como a importância de trabalhar com os jovens a dificuldade que sentiram em usar menos as redes sociais.
“Temos de olhar para estes dados e trabalhar isto com eles e encontrar alguns planos ou estratégias para tentar que eles usem menos as redes sociais“, afirmou o investigador, acrescentando que os jovens, quando confrontados com estes resultados, sugeriram, a nível escolar, mais trabalhos de campo, “que não os obrigassem a estar tão ligados ao computador”.
Relativamente ao tempo gasto em frente ao ecrã durante a semana, os hábitos dos adolescentes alteraram-se, com o Instagram e o YouTube a perderem terreno para o TikTok e WhatsApp.
Os dados indicam que os adolescentes portugueses assistem a menos conteúdos Instagram (passou de 40,5% para 37,1%) e a vídeos do Youtube (39,2% para 32,7%) e passam mais tempo a consultar conteúdos no TikTok (43,1%) e/ou a trocar mensagens no Whatsapp (38,8%).
O estudo mostrou ainda que o tempo excessivo passado nas redes sociais continua a ser o principal motivo (69%) das discussões com a família, amigos ou namorado(a). Os outros dois são o tempo excessivo a não fazer nada/”preguiçar” (68,3%) ou a “surfar” na internet (59,1%).
Questionado sobre como se consegue equilibrar este uso das redes sociais, o investigador responde: “Vai passar por toda a estrutura (…), desde a escola à família, incentivando-os a estar mais com os amigos presencialmente e não tanto “online””.
“E as famílias aqui vão ter um papel muito importante para pensarmos como ajudá-los a promover mais atividades em família que não envolvam as tecnologias (…) e tentar aproveitar alguns momentos em ‘off'”, acrescentou.
Em Portugal, o primeiro destes estudos foi aplicado em 1998 e o último tinha sido em 2018. O estudo, que entre 1998 e 2019 foi coordenado pela psicóloga Margarida Gaspar de Matos, integrou este ano cerca de 6.000 questionários, em 40 agrupamentos de escolas do ensino regular (Portugal continental), num total de 452 turmas. As respostas são de alunos do 6.º, 8.º e 10.º anos de escolaridade.