Apelidar um filme de “entretenimento” continua a ser visto como uma espécie de Miss Simpatia das artes cinematográficas — ao faltarem-lhe qualidades para ser levado a sério e entrar no panteão, toma lá uma paternalista e até condescendente palmadinha nas costas. Antes que se coloquem faixas e tiaras de consolação em “Glass Onion”, deixem-me dizer isto do modo mais inequívoco possível: o sucessor de “Knives Out” é uma pérola de entretenimento puro, e isso é tão tecnicamente difícil de alcançar com frescura e elegância como outras obras mais intelectualizadas. Se para sempre existir essa barreira palerma entre “um bom filme” e “um filme que me deu muito gozo a ver”, poderão encontrar-me feliz deste lado da barricada.
Mas vamos a contexto. Em 2019, Rian Johnson escrevia e realizada um whodunnit com um elenco de luxo, de seu nome “Knives Out”. Nele, um escritor de 85 anos, Harlan Thrombey, junta toda a família em sua casa e acaba por ser encontrado morto, cabendo ao detetive Benoit Blanc navegar as reviengas e surpresas deste homicídio. Johnson tem uma carreira variada, que vai do episódio VII de “Star Wars” a episódios de “Breaking Bad”, passando por videoclips dos LCD Soundsystem e por “Looper”, um dos melhores filmes de sci-fi dos últimos anos.
Aqui, o autor deixa-se inspirar fortemente por Agatha Christie e cria uma intrincada e surpreendente trama que apresenta ao mundo o sulista Blanc (Daniel Craig) e que lhe garante uma nomeação para o Óscar de Melhor Argumento Original (perdeu para “Parasitas”). O sururu foi de tal ordem que uma sequela foi anunciada pouco depois, o que colocou Craig no centro de mais uma saga de filmes, agora que estacionou de vez o Aston Martin de James Bond. “Glass Onion” saiu no cair do pano de 2022, mas já há pelo menos mais um terceiro tomo previsto para 2024.
[o trailer de “Glass Onion”:]
Não é necessário ter visto o filme de 2019 para compreender este. Apenas Benoit Blanc se mantém. Esta é uma espécie de Série de Verão (RIP “Morangos Com Açúcar”) do seu antecessor, com uma ilha exclusiva na Grécia em vez de Massachusetts e biquínis em vez de camisolas de lãs. Desta vez, o excêntrico milionário Miles Bron (Edward Norton) convida os seus amigos de juventude (autoapelidados de “The Disrupters”) para a sua ilha privada para jogarem um misterioso jogo, mas um assassinato real é cometido e depressa os eventos fogem do controle.
O cast é de novo repleto de estrelas, impressionante até nos seus cameos. E se Norton, Janelle Monáe ou Kate Hudson fazem parte do elenco principal, existem cirúrgicas participações de outros pesos pesados, como as aparições fugazes de Ethan Hawke ou Hugh Grant. Até a saudosa Angela Lansbury de “Crime, Disse Ela” surge num cameo numa conversa de Zoom, assim como o também recentemente desaparecido Stephen Sondheim, reputadíssimo criador da Broadway. Em comum, todas estas pessoas parecem estar honestamente a divertir-se. Como, no fundo, é suposto estar o espectador.
Apesar de ser mais robusto no universo criado (e da personagem de Craig estar mais estabelecida), “Glass Onion” é mais fantasioso que “Knives Out”, obrigando a um desligamento maior da realidade para usufruir do filme. Porém, tem o aspeto extremamente realista de ter a pandemia como pano de fundo (e aproveita para fazer o comentário a como o “ficar em casa” dos uber ricos foi tão diferente do nosso). Aliás, um detalhe apenas possível por causa do lockdown é essencial para o twist final, mostrando que Rian Johnson nunca dá ponto sem nó. Porém, o calcanhar de Aquiles do filme é que nesta espectacularidade de ambientes, perde-se em efeitos especiais que, muitas vezes, deixam um pouco a desejar.
A Glass Onion que dá o nome ao filme (Johnson terá perdido o finca pé com a Netflix e sido obrigado ao subtítulo “A Knives Out Mistery”) é a mansão do tal multimilionário, uma figura insuportável que — digo eu — terá sido inspirada no desligamento da realidade dos Elon Musk da vida, alertando até para o facto de que podemos estar na mão de patetas que têm muitos dígitos na conta bancária, mas poucos no QI. Por sua vez, a mansão foi batizada como homenagem ao bar em que todos os intervenientes se conheceram.
É também uma pouquíssimo subtil metáfora sobre as pessoas terem camadas, como já dizia o Shrek ao burro, e uma ode ao poder dos detalhes. Detalhes esses que fazem de “Glass Onion” um docinho. Parece uma ofensa, mas não é. Lembremo-nos mais vezes que o cinema foi inventado, também, para divertir.