A Inspeção-Geral de Finanças (IGF) validou o pagamento a Portugal da segunda tranche do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), no valor de cerca de 2,1 mil milhões de euros, sem que as “verificações das regras de contratação pública” estivessem concluídas.

A constatação é da Comissão de Acompanhamento e Controle (CAC) do PRR, avaliado em 16,6 mil milhões de euros, e faz parte do relatório de acompanhamento do ponto de contacto do Ministério Público (MP) na CAC.

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Mesmo assim, a CAC, que é liderada pelo inspetor-geral de Finanças, entendeu que estavam reunidas as condições validar o pagamento da segunda tranche do PRR — pedido esse que foi submetido pelo Governo a Bruxelas 30 de setembro e foi aprovado de forma preliminar pela Comissão Europeia a 16 de dezembro de 2022.

Pior: o mesmo relatório, da autoria da procuradora-geral adjunta Ana Carla Almeida e publicado no site do DCIAP, constata que, “de um modo geral e sempre que aplicável, as verificações das regras da contratação pública não se encontravam concluídas”.

Órgão que monitoriza a execução do PRR continua com “insuficiências” de “prevenção de fraude e corrupção”

Outra crítica que consta do relatório até parte da própria IGF, que considera que o sistema de controlo interno da Estrutura Missão Recuperar Portugal, que monitoriza a execução dos fundos europeus do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), continua a “registar insuficiências ao nível dos procedimentos” de “prevenção de conflito de interesses, de fraude e de corrupção”.

De acordo com o relatório assinado por Ana Carla Almeida, as estruturas nacionais que executam o PRR continuam a usar procedimentos com uma “fiabilidade” questionável para evitar o “duplo financiamento”. Porquê? Porque não há recurso a “quaisquer ferramentas informáticas”.

E a Estrutura Missão Recuperar Portugal (EMRP) continua a ter problemas de falta de meios. Estava previsto um quadro de 60 pessoas até ao final de 2022, mas ainda só foram contratados 42 funcionários. Mesmo assim, uma evolução clara face aos 29 do primeiro relatório.

Já a Inspeção-Geral de Finanças está a reforçar os seus quadros inspetivos e deverá ter uma equipa dedicada ao PRR e ao acompanhamento dos restantes fundos europeus que é constituída por seis elementos.

Ausência de regras para suspensão de apoios por incumprimentos da parte de Portugal

Outra novidade deste segundo relatório face ao primeiro documento prende-se com o facto de a procuradora-geral adjunta Ana Carla Almeida ter constatado, igualmente “com preocupação”, a ausência de regras por parte da Comissão Europeia para o caso de ser necessário suspender pagamentos a Portugal por incumprimento.

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Explicando. Os pagamentos da União Europeia a Portugal não dependem da contratualização de projetos específicos, mas sim do cumprimento de “marcos” e “objetivos.” Eis alguns exemplos de marcos que Portugal diz que cumpriu:

  • “Entrada em vigor do regulamento relativo à atribuição de apoios financeiros pelas Administrações Regionais de Saúde”;
  • “Assinatura de acordos entre os municípios de Lisboa/Porto e as unidades técnicas locais, que definirão o âmbito das medidas a serem apoiadas”;
  • “Publicação do Programa de Inovação e Digitalização da Agricultura dos Açores”.

No total, Portugal diz ter cumprido 18 marcos e duas metas que correspondem a “um apoio financeiro global de 2.092.365.517 euros“.

Ora, o que o MP constatou é que, além de não ter sido possível verificar o cumprimento de alguns desses marcos, a Comissão Europeia não estabeleceu previamente critérios para regular e sancionar os eventuais incumprimentos.

Isto é, não é possível perceber de “forma clara, transparente e previsível” como acontecerá uma “suspensão” ou a “rescisão de acordos relativos às contribuições financeiras e ao apoio sob forma de empréstimos” da União Europeia.

“Esta ausência de clarificação aporta ao processo uma imprevisibilidade e consequente indesejável insegurança que urge ultrapassar”, lê-se no relatório do MP.

Com a aprovação do segundo pedido de pagamento “terão ficado cumpridos 58 dos 341 marcos e metas previstos no PRR” — o que corresponde a 17% da sua execução.

Portugal receberá assim um total acumulado de cerca de 5,1 mil milhões de euros — o que faz com que 31% do total do PRR já tenha sido transmitido a Portugal.

Apesar de alguma evolução positiva, MP mantém “preocupações”

Sempre que Portugal pede um novo desembolso à Comissão Europeia no âmbito do PRR, como aconteceu em setembro de 2022 no valor de cerca de 2 mil milhões de euros do PRR atribuído a Portugal, é necessário que o MP emita um novo relatório de acompanhamento da execução dos fundos europeus. Foi o que aconteceu com o segundo pedido de desembolso.

Este já é o segundo relatório produzido pela procuradora-geral adjunta Ana Carla Almeida. E quais são as diferenças face às primeiras conclusões?

Algumas das “principais preocupações” mantém-se:

  • A Estrutura Missão Recuperar Portugal “continua a ter insuficiências” nos procedimentos para avaliar o cumprimento das regras, nomeadamente as “relativas à prevenção de conflitos de interesses, de fraude” e “de corrupção”, lê-se no relatório do MP. Isto apesar de terem sido constatadas algumas melhorias;
  • Apesar da evolução positiva, permanece o problema do duplo financiamento. Ou seja, continuam a existir riscos de o mesmo projeto ser apoiado em duplicado por programas e linhas diferentes. Isto porque o cruzamento de informação é feito sem recurso a “ferramentas informáticas”, o que leva o MP a questionar a “fiabilidade” do procedimento, pois o mesmo não “poderá, de forma alguma, ser compensado pelas informações relacionadas com a ausência de duplo financiamento prestadas pelos próprios beneficiários”;
  • A procuradora-geral adjunta Ana Carla Almeida dá mesmo um exemplo concreto, citando uma auditoria do Tribunal de Contas que analisou a aplicação de recursos públicos na digitalização das escolas”: “não está afastada a possibilidade de duplo financiamento dos investimentos” financiados pelo Portugal 2020;
  • A Comissão de Acompanhamento e Controlo do PRR, que realiza auditorias ao funcionamento do sistema de controlo interno, “continua a emitir pareceres prévios aos pedidos de pagamento”. Ou seja, “não se encontra salvaguardada uma adequada segregação de funções”.

Por outro lado, o MP salienta as seguintes medidas positivas:

  • A Estrutura Missão Recuperar Portugal deixou de depender do ponto de vista orçamental da Agência de Desenvolvimento e Coesão, que assegura a coordenação geral dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento;
  • E o facto de ter sido “formalizada a Estratégia de Auditoria e Controlo reportada a junho de 2022”. Contudo, uma das três auditorias programadas para 2022 não estava concluída no momento em que o MP concluiu o seu trabalho.

Título e texto alterados às 13h53m, clarificando-se que o pedido de pagamento de 2.ª tranche do PRR foi feito sem “verificação das regras da contratação pública”.