Os irmão Nadeem e Saud, a quem se junta Salik, têm um trabalho nobre: salvar aves magoadas em Nova Deli. Mais especificamente, lutar pela preservação do milhafre-preto. O ar poluído da cidade indiana não lhes é favorável e em certas imagens deste filme de Shaunak Sen quase que se sente a queda das aves como consequência da contaminação atmosférica. São arrepios que fazem sentido, alinhados com, por exemplo, as imagens de abertura do filme, um primeiro plano que nos mostra uma série de criaturas a caminhar pelo lixo. O que “All That Breathes” tem de especial vem nas imagens, mas também na mensagem, no comportamento deste trio que salva aves com resiliência e sentido de missão. E é fascinante perceber como as expressões corporais e o tom de voz comunicam que os protagonistas não procuram recompensa, mérito ou aclamação. Fazem apenas aquilo que aprenderam a fazer.
O realizador indiano, com quem falámos sobre “All That Breathes”, filme nomeado para o Óscar de Melhor Documentário e que se estreia na HBO Max esta quarta-feira, 8 de fevereiro, resume os episódios de reconhecimento crítico com um “tento não pensar muito sobre isso, são muitas emoções ao mesmo tempo”. Ao mesmo tempo, dá respostas tranquilas, humildes e com desvios de paixão. Como quando um jornalista lhe pergunta sobre Nova Deli e lhe pede para fazer uma espécie de julgamento: “A poluição no ar é um problema constante. Mas esta cidade é a minha casa. Não sei o que mais dizer.”
A casa, a preocupação com o sítio onde se vive. Por vezes, como cidadãos, esquecemo-nos disto. E se os irmãos e Salik estiverem apenas a cuidar da cidade, dos seus pássaros e nada mais? Precisamos de ver outra mensagem para lá daquilo que é factual e concreto? É uma das mensagens de “All That Breathes”, sem preocupações em ser um filme ambiental ou carregado de atitude política: está mais concentrado — e bem — em ser a demonstração da vida resiliente de um grupo de pessoas. Por isso, explica-nos o realizador, “apanhamo-los a discutir, ou melhor, em momentos de tensão, vítimas do cansaço e da preocupação, porque começam a não ter mãos para medir. São situações caricatas”, afirma. Acrescentamos nós que são tratadas com um brio que lhes concedem um efeito ainda mais fascinante.
[o trailer de “All That Breathes”:]
Um dos melhores momentos acontece quando alguém diz aos três “heróis” que existem alguns pássaros feridos no outro lado da margem de um rio. A tarefa parece árdua, os três discutem sobre o que fazer, um deles descarta-se de imediato da hipótese de se meter na água. Vão os outros dois. De início, Shaunak também está na água com eles, a filmar e, de repente, o espectador apercebe-se que até o realizador foi apanhado desprevenido pela situação, pela coragem e pelos métodos cegos daquela trupe. Eles começam a nadar até à outra margem, percebe-se que está frio, percebe-se também que não é tão perto como os primeiros ângulos da câmara sugerem. É longe. Apanham o pássaro, metem-no numa gaiola com boias e regressam. Não precisam de nadar muito para perceber que estão em dificuldades, o corpo acusa o cansaço e o regresso não vai ser tranquilo. A câmara filma isto tudo à distância, nada nem ninguém estava preparado para o momento. São minutos tensos, não há mais ninguém no local e não há tempo para perguntas como “são heróis ou são estúpidos?”. É apenas o que fazem.
Explica o realizador quando perguntamos “como é que foi ficar ali a ver tudo aquilo acontecer?”: “Depressa percebemos que são três dom quixotes que estão a fazer pequenos milagres todos os dias. Eles têm uma esperança impossível, uma resiliência difícil de encontrar e são bilingues na sua atitude, ora são simpáticos, ora estão totalmente impacientes. Nessa cena no rio, estávamos todos nervosos, eu não sabia como fazer. Se estivesse mais preparado, consideraria ir com eles. Mas não tinha como. Pode parecer que essa cena espontânea é uma raridade, uma exceção, mas não. Aquilo é mesmo o tipo de coisas que eles fazem. Eu nunca faria aquilo, nem conheço quem o faria. Mas para eles, trata-se do dia-a-dia. Eu estava chocado, mas não surpreendido.”
Ao longo das perguntas que fazemos, Shaunak reforça a ideia de quotidiano. Tenta filmar aquilo que para a pessoa comum, que vê o filme no sofá ou no ecrã portátil de última geração, parece uma existência heroica, sempre com a humildade de quem retrata a rotina daquelas três pessoas: “O que mais me impressionou, entre mil coisas, foi a persistência cega, a resiliência de ir à frente. Eles nunca falam como mártires nem romantizam o que fazem. Agir daquela forma estoica e pouco sentimental é fabuloso. Foi o dia-a-dia deles que mais me impressionou.”
Tudo isto acontece com um sentido de precariedade. O hospital para onde elevam os animais é uma garagem, as condições são praticamente nenhumas – há um momento em que a luz falha durante uma operação – e o modo como aprenderam a cuidar dos animais não poderia ser inventado, nenhum argumentista se lembraria dos detalhes. Quando surgiu a vontade de cuidar dos animais, os dois irmãos eram interessados em musculação, praticavam a modalidade, e o conhecimento sobre o corpo e o funcionamento dos músculos mostrou-lhes o básico sobre como tratar de certas mazelas nas aves. Percebe-se que, ao fim de anos, cada dia é uma aprendizagem e os próprios têm noção da distância entre o bem que fazem e o muito melhor que poderiam estar a fazer. Contudo, isso importa pouco.
Com o sucesso do filme, os irmãos têm ido a muitos festivais de cinema. “Já lhes disse para gerirem as expectativas, para que não pensem que isto vai mudar a vida deles para sempre”, confessa o realizador, enquanto explica que o filme os tem ajudado – os produtores de “All That Breathes” financiaram o novo hospital dos irmãos – mas só se irá perceber melhor o alcance e o efeito do filme quando chegar agora ao grande público, com a estreia na HBO Max. É uma relação triangular — ar, aves e humanos — que não quis ser um documentário convencional. Não é uma história sobre a vida animal; também não é uma narrativa política; e não é o retrato de “pessoas boas que fazem o bem”. “Ao não ser nenhuma destas coisas, acabei por ficar com um pouco de cada uma delas”.