“A Carvoaria Jacto faz 70 anos. Queres ir lá?” Foi desta forma sucinta que a editora desta secção, a Maria Ramos Silva, me desafiou voltar onde já fui feliz, quebrando as regras da sensatez de Rui Veloso, e correndo o risco de contaminar velhas e boas memórias de uma época em que a Carvoaria tinha apenas meia dúzia de mesas e uma montra recheada de carne de onde se escolhia à peça e ao peso tal e qual como no talho.
Aceitei o desafio – sou um estômago mole, admito – sem no entanto partilhar com a Maria os meus sentimentos mais profundos acerca da efeméride que estava na sua origem. Utilizarei, a esse propósito, o sistema de fact-checking do Observador para a classificar: enganadora.
É verdade que em 1953 nasceu, na Rua Maria Andrade, número 6, um estabelecimento com o nome Carvoaria Jacto e que a denominação legal da empresa se mantém inalterada desde esse ano, mas estender o seu período de vida até ao presente é equivalente a dizer que eu, por partilhar genes, o nome e a morada do meu finado avô George, celebrarei 99 anos no próximo dia 21 de agosto.
Se não fui completamente honesto com a Maria, isso deve-se ao facto de 1) ter demorado algumas horas a formular o raciocínio exposto acima; 2) achar que a visita e consequente texto teriam, apesar de tudo, validade 3) provar publicamente que é possível fazer o contrário do que aconselha o famoso life coach Rui Veloso sem comprometer a felicidade – a título de exemplo, graças ao meu ouvido absoluto a minha mulher e eu raramente ouvimos a mesma canção. Mas a relação continua sólida.
Desde que cresceu em tamanho, no início da década passada, que a Carvoaria não demorou a revelar-se um fenómeno de popularidade. Uma popularidade, diria, imprevisível, se pensarmos que é um restaurante localizado num bairro residencial, a meio de uma rua inimiga dos passantes, pela evidente inclinação, e dos automobilistas, pela falta de estacionamento, com preços que já foram bem mais em conta e uma ementa inimiga das dietas contemporâneas, por ser 85% carnívora, 10% piscívora e 5% omoletes.
Pese tudo isto, a Carvoaria Jacto continua, em 2023, a apresentar uma taxa de ocupação de fazer inveja a muitos congéneres. Tanto que reservar mesa para o segundo turno, o das 21h, exige antecedência assinalável. Se fosse místico, arrumaria o fenómeno na gaveta dos milagres dos Anjos, atribuindo a responsabilidade ao nome do bairro. Como não sou, vi-me obrigado a procurar, in loco, explicações credíveis para a prosperidade da casa.
Cheguei cedo, antes do início do telejornal, sem reserva prévia. As mesas vagas já escasseavam e a condição imposta por quem me recebeu para ceder uma delas foi assegurar que sairia a tempo do turno seguinte. Fechámos negócio.
A bôla de carnes, servida como entrada em pequenos paralelepípedos desde os tempos em que o restaurante dava pelo nome de Grill Santa Cruz – com uma gralha no toldo, eternizada pela lente do Google Street View –, estava indisponível nesse dia. Não pude confirmar se continua a ser um abre-apetite competente. No seu lugar aceitei um sortido de oito pequenos salgados: três croquetes, duas empadas, uma chamuça, um pastel de bacalhau e um rissol de camarão.
Destaque para as empadas, de inspiração alentejana e recheio inspirado, e para a boa surpresa que foi o pastel de bacalhau que se desfez numa nuvem ao contacto com a boca. Tudo o resto estava correto mas imemorável.
A montra de carnes, hoje mais ampla e luminosa que noutros tempos, continua, como no passado, a ser a melhor forma de escolher o prato principal. O proprietário da Carvoaria, que está sempre nas cercanias da matéria-prima, sabe da poda animal e é bom conselheiro. Vieram para a mesa uma dose de rodião, que é o entrecosto de vitela mirandesa, e outra de espetada da mesma espécie. Para acompanhamento, batatas fritas, grelos e esparregado. O serviço é simpático e despachado, sem salamaleques nem forrobodós.
O rodião, que não é um corte fácil de encontrar em Lisboa, estava retalhado e cozinhado a preceito, tal como a carne da espetada, tenra, servida em generosos medalhões no ponto certo, médio-mal. O carvão da Carvoaria, agora em brasa, continua a fazer jus à função primordial do estabelecimento e isso explica parte do seu sucesso. O acerto dos acompanhamentos ajuda: do esparregado caseiro, com textura aveludada, ouvi, na mesa ao lado, dizerem “não existe outro assim”. Até existe, mas não abunda.
Noutros tempos, a casa permitia que os clientes se servissem de um buffet de molhos, uma cortesia que a pandemia roubou e ainda não devolveu. A boa oferta de sobremesas também merecia a opção de buffet, infelizmente inexistente. O best-seller dá pelo nome de Melhor Bolo de Chocolate do Ribatejo, comprado a um fornecedor da região – trata-se de um bolo de chocolate cremoso com cobertura de mousse, intenso ma non troppo. A amplitude açucareira da vitrina, de fazer inveja a algumas pastelarias, vai da encharcada de ovos digna de convento a uma pavlova de morango, doce sem ser enjoativa, com as texturas bem contrastadas.
Somados os elogios, não se desenganem: é fácil sair da Carvoaria Jacto insatisfeito. Basta ser vegetariano. Para quem não é, continua a ser um porto seguro, confortável, onde conta, sobretudo, o saber com o que contar. Já era assim há dez anos. Mas não há 70.
George Gabriel nunca apresentou um programa de variedades. Considerem-no, antes, um artista de variedades: ilusionista amador, numismata, praticante de fascinação hipnótica. Também há quem lhe elogie as almôndegas. Sustenta os seus vícios com diversos ofícios, nenhum deles tão útil a terceiros como o de Experimentador Implacável.