Quando tinha apenas quatro anos de idade, Pedro Carvalho de Almeida ficou fascinado por umas sapatilhas que viu e que “pareciam nuvens, parecia que calçava umas almofadas”. Não sabia mais nada sobre elas, mas queria ter umas iguais. Mais tarde, aos dez anos, percebeu que eram umas sapatilhas da Sanjo, uma das mais antigas marcas portuguesas de calçado desportivo. “Nessa altura já tinha outra sensibilidade para perceber as cores, os cheiros, os grafismos, o próprio desenho das sapatilhas”, explica ao Observador.
Desde novo que o designer e professor começou a olhar para o desenho e comunicação das marcas e, em 2002, quando foi convidado para ser docente na Universidade de Aveiro, viu a oportunidade ideal para estudar a fundo a ligação entre o design e a indústria do calçado: “Sendo Portugal um país tradicionalmente produtor de calçado, por que razão existiam tão poucas marcas portuguesas com expressão a nível internacional?”, questionou.
Mais de 20 anos depois, nasce a exposição “Sapatilhas: Marcas Portuguesas do Estado Novo ao Virar do Milénio”, um projeto que pretende dar a conhecer uma parte do legado da indústria nacional de calçado desportivo, com a coleção pessoal de Pedro Carvalho de Almeida, constituída por mais de 500 modelos de sapatilhas, representativas de 100 marcas criadas e fabricadas em Portugal. Esta exposição, acrescenta o designer, é dedicada “às marcas mal amadas da indústria portuguesa”, desconhecidas por grande parte da população. A exposição tem início este sábado na Casa do Design, em Matosinhos, e está disponível até ao dia 27 de agosto.
“A exposição tem um duplo objetivo: por um lado, pretende promover uma retroespectiva histórica sobre aquilo que foi a produção industrial relacionada com a produção de calçado e, por outro lado, permite estabelecer um momento de reflexão crítica sobre aquilo que pode ser feito, usando o legado da indústria, mas também incorporando aquelas que são as preocupações atuais ao nível da sustentabilidade”, explica Pedro Carvalho de Almeida, acrescentando que há uma exploração do “significado cultural, social, político e económico que as marcas representam”.
A exposição parte de uma coleção com mais de 500 modelos de sapatilhas representativas de cerca de 100 marcas (Ana Catarina Peixoto/Observador)
A exposição está dividida em núcleos, sendo que a parte inicial é dedicada à contextualização histórica da evolução do calçado desportivo em Portugal, que explica, por exemplo, as diferenças no crescimento das marcas antes e depois do regime do Estado Novo. Num segundo núcleo é abordado o caso particular da Sanjo, a primeira marca para a qual o curador começou por focar as atenções para elaborar a sua tese de mestrado.
“Cheguei à conclusão que temos nas marcas portuguesas todo um legado simbólico, cultural, um valor histórico e até um significado muito relacionado com a própria memória coletiva que permitia e que dava pistas para a possibilidade de reinterpretar estas marcas à luz do contexto atual”, explica, acrescentando que a Sanjo “é representativa de duas partes do desenvolvimento do calçado em Portugal durante o século XX”. Neste núcleo é possível observar a evolução do desenho gráfico da marca e são reveladas algumas das dificuldades ao nível da sua sobrevivência.
O terceiro núcleo é dedicado à tecnologia usada no fabrico de sapatilhas em Portugal, havendo ainda uma instalação audiovisual e uma parte onde os visitantes podem contribuir com informação, testemunhos ou questões sobre este tema que faz parte da nossa memória “identitária, coletiva, em permanente evolução”.
Sanjo, fase 2 (Luís Espinheira)
Chegando ao corpo central, o “coração da exposição”, são apresentados vários modelos de calçado desportivo de nove marcas em destaque: Celtex, Centro, Cross, Desportex, Gitto’s, Jorui, Mind, Valcor e Xávi Sport. É ainda apresentado um conjunto de personalidades marcantes para a indústria, como Valdemar Correia, administrador da Sanjo, António Xavier, fundador da Xávi Sport, e Ângelo Sampaio, fundador da marca Desportex, que desenvolveu calçado desportivo que incluiu o remo, a caça, o rugby, o tiro, o atletismo, entre outros. Nas paredes há ainda modelos de sapatilhas apresentados por tipologias, sendo que, no total, esta sala conta com 77 marcas, e ainda com uma parte dedicada às embalagens das sapatilhas.
Há ainda um núcleo dedicado ao caso da marca de calçado Cortebel, que “poderá ter sido a última marca a morrer daquelas que estão apresentadas na exposição”. Além dos documentos originais da empresa que foi possível conseguir, e com a experiência que o designer teve na interação dentro da própria fábrica, destacam-se três calçados produzidos por esta marca: a bota militar — produzida especificamente para o exército português –, o modelo ténis e o modelo Summer Time, que vendeu 12 milhões em todo o mundo.
Há também uma parte dedicada à apresentação de uma série de protótipos que utilizaram modelos da Cortebel e feitos artesanalmente pelos operários da marca. “Tudo isto mostra a importância da preservação desta herança industrial, o potencial criativo que a ligação entre o design e a indústria pode permitir”, acrescenta Pedro Carvalho de Almeida. No final da exposição, há um espaço com uma pequena amostra que pretende tocar nas questões da sustentabilidade em diferentes níveis, com um conjunto de modelos criados a partir de excedentes industriais e que pretendem servir de inspiração para o futuro neste setor.
O processo para chegar a todo este acervo, explica o curador, foi complexo, longo e exigiu “picar pedra, percorrer o país de lés a lés, vasculhar tudo o que era possível”. “Foi um processo muito complexo, mas que nos ajuda a perceber as coisas de uma forma completamente diferente, ajuda a dar-lhes significado e a valorizá-las enquanto argumento e discurso próprio”, acrescenta, sublinhando que, no final, ficam “sentimentos mistos”: por um lado “o sentimento de tristeza” por todas as marcas que não foram devidamente valorizadas e pelos trabalhadores que nem sempre foram lembrados, mas, por outro lado, “uma alegria tremenda a partilha de memórias com gente fantástica e com mensagens tão boas, positivas e valiosas”.
Espero que o meu contributo seja esse: a conversão em algo maltratado, converter esta tristeza em alguma esperança e sobretudo em muita alegria”, termina.
Além desta exposição, está também agendado um ciclo de conversas com moderação do curador Pedro Carvalho de Almeida para serem debatidos vários temas associados às pessoas, aos objetos, à cultura e à indústria do calçado desportivo em Portugal. A primeira conversa realiza-se no dia 25 de fevereiro e é dedicada aos conteúdos e ao catálogo da exposição. A exposição resulta de uma coprodução da Câmara Municipal de Matosinhos com a esad–idea, Investigação em Design e Arte e o Instituto de Investigação em Design Media e Cultura (ID+).
